Domingo na Cidade de Deus

1. — Pega o quatro-meia-cinco — disse Viviane.

Então no último ponto antes do túnel Zuzu Angel esperámos o quatro-meia-cinco para a Cidade de Deus. Claro que estávamos no Rio de Janeiro, túneis com nomes destes, por onde chegar uma hora e meia depois a favelas com nomes destes, onde mais? Era um daqueles domingos de Outono que na Europa seriam Verão, incluindo os mosquitos que já tinham devorado as nossas canelas no Jardim Botânico, talvez na sumaúma dita de Tom Jobim. O primeiro ônibus a aparecer dizia logo Cidade de Deus, mas era o quinhentos-e-cinquenta, que atravessa Rio das Pedras, favela-fortaleza da milícia, em voltas que não acabam. E a partir daí, todos os ônibus para a Cidade de Deus eram esse ou o cinco-meia-cinco, até que um dos motoristas esclareceu: não tinha mais quatro-meia-cinco, passara a cinco-meia-cinco. Se nem Viviane, que mora na Cidade de Deus, sabia, é porque ônibus no Rio de Janeiro faz o que quer, sem lenço nem documento. Seja, fomos de cinco-meia-cinco, via expresso, Barra da Tijuca.

2. A Barra da Tijuca continua feia, agora com obra do metrô a meio da estrada, aquela Linha 4 a caminho da Olimpíada que entretanto são tapumes, buracão ao meio. Salva-nos o trânsito de domingo em véspera de feriadão: milhares de cariocas sumiram, o ônibus voa, mal temos tempo de avaliar, até, se a réplica da Estátua da Liberdade num dos 367 shoppings da Barra é em tamanho real. Eu diria que sim, torcendo o pescoço enquanto o cinco-meia-cinco contorna o betão da Cidade das Artes e toma a Linha Amarela a caminho de Jacarepaguá. Vai ser o meu recorde de chegada à Cidade de Deus. Mas mesmo com queda do real-inflação-ameaça de impeachment a construção civil segue em fuga para a frente, mais condomínios miami-wannabe, que há seis meses não estavam lá.

3. Já os apês da Cidade de Deus continuam verde-sujo-grafitado. Foi onde Viviane disse para saltarmos: os apês, ou seja, os apartamentos: aquele começo da Cidade de Deus mais próximo ainda de último escalão de habitação social que de barraco. Saltámos, atravessámos a estrada para esperar Viviane do outro lado, e enquanto ela não vinha um mulato largou a moto com o capacete em cima como se ninguém pudesse nem roubar. Na véspera, tínhamos atravessado essa terra de ninguém que é a fronteira interior entre Ipanema e Leblon e, aí, sim, ficara parecido com perigoso: sábado à noite e só escuridão, floresta de grades roubando a calçada, passeio de ninguém. Qualquer favela tem mais vida do que Ipanema enclausurada no crepúsculo de 2015.

4. Viviane de Sales vem vindo, sorrindo, temos pelo menos três razões para celebrar, os três concursos que ela ganhou com projectos colectivos a partir da Cidade de Deus, envolvendo língua, linguagem, cidade. Não é só à noite que Ipanema parece ligada à máquina, à vista, por exemplo, da Cidade de Deus, aqui dita cdd.

— É a sua primeira vez na cdd? — pergunta Viviane ao meu amigo.

— É a minha primeira vez no Brasil — responde ele.

Estamos no vão do Viaduto da Linha Amarela, para começar. Por cima de nós, os bólides da Barra aceleram. Cá em baixo, crentes negras alinham cadeiras de plástico, toda uma plateia.

— O que vai acontecer ali? — pergunto.

Foto
Kauan Oliveira de Lima

— Ah, um culto — responde Viviane.

Porque vão de viaduto, no Brasil, é palco, baile, festa, culto evangélico, pedaço de cidade tomado por quem a cidade expulsa.

5. A periferia do Rio, à semelhança de São Paulo, fervilha de saraus, como os brasileiros chamam aos recitais de poesia. Viviane anima um deles há anos, o Poesia de Esquina, e agora começou a cruzar os poemas com rap. A estreia foi justamente debaixo deste viaduto, por isso ela queria começar aqui o nosso rolê de domingo, mostrando o palco e a plateia improvisada onde já começou a dar certo o cruzamento de música e poemas. O rapper que se juntou a ela na organização vai juntar-se a nós mais tarde, e entretanto continua quente demais para não sentar numa das pracinhas, pedir um litrão, brindar enfim, três vezes. É o que fazemos, enquanto os mosquitos acabam de nos devorar, com uma roda em volta, crianças, churrasquinhos, namorados, têvês, futebóis, e os demais em rolê: passeio, volta de domingo, de bobeira, mesmo.

6. Um dos brindes é ao projecto da Esquina Editorial, editora que Viviane bolou a partir da experiência do Poesia de Esquina. Para publicar autores da Cidade de Deus mas não só, da favela mas não só. Os milhões dos 450 anos do Rio encolheram na crise, os milhões em geral encolheram, a queda do real ainda não será toda a queda na real, e Viviane passou entre as gotas da chuva: tem de tocar para a frente agora, e não tem nem 25 anos. Tenho idade para ser mãe dela, ela diz que sou filha, eu agradeço.

7. Mudando para um murozinho, com vista em simultâneo para parque infantil e polícia armada, aparecem uma amiga e um amigo, guerreiros da mesma guerrilha de Viviane de Sales. A amiga, que já é avó, negra-negra, mora há décadas naquele fim da Cidade de Deus a que chamam Karaté, porque à falta de armas as mortes eram à pancada, imitando Bruce Lee. Ajustes de contas, traficantes ou polícia, violência de qualquer jeito, de um jeito que Ipanema nunca vai conhecer. O amigo mulato, cabelo em estrela de muitas pontas, é palhaço, pintor, animador, habitué de poemas há muito. Dali migramos todos para a Praça da Bíblia, passando os preparativos para o baile funk, e assentamos em volta de mais um litrão. A toda a volta da praça há botecos cheios, esse pé no chinelo, pé na rua, que é a essência do Rio de Janeiro, como Ipanema foi, noutro sistema solar.

8. Aí chega o rapper, mulatão, rastas até à cintura, tatuagem:

— Prazer, sou o Jonathan. 

Mas todo o mundo lhe chama Híbrido mesmo, que é o apelido, aqui dito sobrenome. Jonathan Híbrido na Praça da Bíblia, e ainda não vimos nada:

— O Híbrido é pastor — lança Viviane, no prazer de ver os nossos queixos caírem.

Pastor?

— Eu sou pastor — confirma ele, alegre, saindo para pegar uma latinha de Red Bull porque é pastor, nada de cerveja como nós.

Jonathan plantou a Igreja Rio. É a sua própria igreja. Ele diz “plantar”. Plantou literalmente no quintal. Esta manhã de domingo teve culto. Tinha violão, teve evangelho. Jonathan Híbrido, MC da Cidade de Deus, em breve co-Mestre de Cerimónias da Poesia de Esquina com Viviane de Sales, plantador de igreja, sorriso sem um dente errado, quase 32 anos.

9. Rio de Janeiro, vitamina, suplemento alimentar, não dá para ficar muito tempo longe. E olhe lá que a coisa tá braba, mais que cidade partida, país partido (já ninguém é pêtista, dizem os últimos amigos pêtistas engolindo os amigos que na última eleição votaram Aécio). Imagina depois da Olimpíada, o bicho vai pegar, mas se alguém está preparado para isso não é Ipanema às escuras, é quem já nasceu preparado, como mais ou menos todo o mundo na cdd.

 

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