Do "Brexit" ao "Amerexit"

Se Donald Trump ganhar, a América será como um planeta que sai da sua órbita e que viajará sem tino nem destino pelo espaço sideral da vida política global.

1. O "Brexit" e a sua fronda populista continuam a fazer as suas vítimas e a última é o impecável sistema jurisdicional britânico. Não alcanço que razão levou Theresa May a decidir que iniciaria o processo de saída sem consultar previamente o Parlamento. Para quem conhece os meandros do constitucionalismo britânico, esta decisão alicerça-se na royal prerrogative. Mas, atenta a importância do assunto, a natureza parlamentar do acto de adesão de 1972 e o carácter consultivo do referendo, não se compreende como pode ser invocada. A ironia política é grave e profunda: uma decisão de saída que é tomada para recuperar os poderes soberanos do Parlamento de Westminster seria iniciada à total revelia desse mesmo Parlamento. Neste quadro, alguns cidadãos, ciosos da competência parlamentar e decerto receosos da “ligação directa” entre o eleitorado e o executivo, questionaram a constitucionalidade desta actuação junto dos tribunais. E, creio que sem qualquer surpresa, obtiveram ganho de causa. Claro que há ainda recurso e espaço para alguma argumentação contrária, mas julgo que a necessidade de assentimento parlamentar prévio prevalecerá. Tudo isto está ainda no normal devir da vida política. Onde as coisas verdadeiramente se tornam perigosas é no modo como aquela decisão judicial foi recebida num importante sector da opinião publicada. Quando jornais relevantíssimos se levantam com títulos “Juízes contra o povo”, algo está podre no reino dos britânicos! Criticar e censurar uma decisão judicial é perfeitamente admissível e é até salutar em qualquer sistema democrático. Mas diabolizar o poder judicial e a sua responsabilidade por garantir a rule of Law e pô-lo sob a alçada da suposta vontade maioritária é deveras assustador. E especialmente assustador no contexto do Reino Unido, em que curiosamente a rule of Law e o respeito pelos direitos fundamentais sempre valeu mais do que a vontade eleitoral jacobina; onde, para simplificar, Locke sempre valeu mais do que Rousseau. Nova e mais amarga ironia: uma saída que é feita em nome da reposição da soberania dos tribunais britânicos em face do “temível” Tribunal de Justiça do Luxemburgo, os tribunais ingleses são vilipendiados como inimigos da democracia e opressores da vontade popular. Quo vadis Britannia?   

2. Ao mesmo tempo, nesta nervosíssima terça-feira, joga-se o "Amerexit", que o mesmo é dizer a saída dos Estados Unidos do sólido concerto das nações do Ocidente. Se Donald Trump ganhar, a América será como um planeta que sai da sua órbita e que viajará sem tino nem destino pelo espaço sideral da vida política global. Será terrível o impacto desta saída de órbita e estimo que se possa fazer sentir violentamente em três planos.

O primeiro será o plano da segurança global e da defesa do Ocidente. E aqui a notória predilecção pela Rússia e pelo nacional-populismo de Putin criará a maior mudança geopolítica depois da II Guerra Mundial. Gerará uma enorme desconfiança nos parceiros europeus, especialmente de leste. Talvez esta deriva possa ser travada pelo Pentágono, mas a relação de confiança que estrutura a aliança ocidental será sempre muito abalada.

O segundo será o plano da economia global e, designadamente, do movimento de liberdade de comércio. Trump imporá uma agenda proteccionista que vai mudar a face da globalização tal como a conhecemos. O fechamento da economia americana desencadeará uma onda de respostas e retorsões dos grandes blocos mundiais e a instalação de uma séria e longa crise não deve ser afastada.

O terceiro será o plano político interno das democracias ocidentais, em que a eleição de Trump significará um enorme incentivo e encorajamento a todos os populismos que ali pululam e despontam. As chances de sucesso de um Wilders, de uma Le Pen, de uma Petry e até de um ressuscitado Farrage aumentam exponencialmente a partir do momento em que tenham um aliado em Washington, para lá do que já têm em Moscovo.

 Espero ardentemente que estas nuvens possam varrer-se do nosso horizonte na noite e na madrugada de hoje. Mas, mesmo perdendo, há feridas abertas que não são fáceis de fazer sarar.

P.S. –Tavares, numa das suas crónicas, qualificou o meu esclarecimento sobre o papel do PPE na malograda candidatura de Georgieva com a palavra “abespinhado”. Basta ler o que escrevi para ver o tom sereno e pedagógico com que nesse texto desmontei aquela impostação fantasiosa, que tanto curso fez entre nós. Na verdade, o Governo de Merkel é de bloco central e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Steinmeyer, é socialista. De resto, há mais de uma semana, foi ele quem secretamente veio a Lisboa fazer as pazes com António Guterres. O presidente do Partido Socialista Europeu é búlgaro e apoiava a sua compatriota (coisa que nunca fez o presidente do PPE, por sinal, francês). E a senhora Mogherini é uma socialista italiana que, a acreditar no Expresso, deu instruções a embaixadores da UE. Repetido isto, palavras para quê? Como é possível que um historiador não tenha percebido que, nesta como em muitas outras matérias, a nacionalidade e o Estado ainda pesam mais do que as “ideologias”? Quem parece realmente incomodado, e com escrita abespinhada, patente na necessidade extemporânea de ressuscitar o tema e de lançar reptos e desafios que ecoam no vácuo, é Rui Tavares. Mas infelizmente, nos próximos tempos, ele vai aprender que, apesar de lhe dar muito jeito e a mais uns tantos responsáveis do PS e do Bloco, o PPE não é a “central do mal” e, muito menos, a sempiterna causa causante das coisas. Talvez fosse tempo de, num destes dias, nos explicar por que razão, na Europa, os partidos radicais de esquerda que tanto preza – como o PCP e o Bloco – votam maioritariamente ao lado de Le Pen, de Farage e da extrema-direita populista… Nesse dia, talvez compreenda o que aqui se quis dizer e tenha até alguma nostalgia desse efabulado PPE que perfaz o seu imaginário. 

 

SIM. Manuel Sampaio Pimentel. Estudante, despertou para a coisa pública; depois, foi quase só serviço público, com independência rara. E no curto-longo final foi testemunho humano. Tão sublime que, mais do que comover, interpela.

 

NÃO. Primeiro-ministro e a Caixa. O “passa-culpas” de Costa é inaceitável. Se foi o Governo que fez a lei, como pode exigir dos outros uma interpretação e não dizer qual foi a intenção do legislador ­­­– a sua intenção – ao aprová-la? 

 

 

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