Dilma começa a batalha que vai acabar no seu ocaso político

O Senado do Brasil começa hoje a julgar o impeachment de Dilma Rousseff. Depois de esgotar todos os trunfos processuais e políticos, Dilma parte para o processo sabendo que só um milagre lhe conservará o lugar.

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“A história não termina dia 29. Ela começa dia 29”, disse Lula UESLEI MARCELINO/REUTERS

Ainda não passou sequer uma semana desde o final dos Jogos Olímpicos e o clima de festa que irradiou do Rio de Janeiro para todo o Brasil já começou a apagar-se no processo de impeachment (destituição) da Presidente Dilma Rousseff, que nesta quinta-feira se inicia no Senado. Depois de cinco meses de intensa polémica, há poucas razões para não apostar no veredicto dos 81 senadores: Dilma vai ser afastada do cargo para a qual foi eleita em Outubro de 2014 e o seu ex-vice-presidente, Michel Temer, vai substituí-la no Palácio do Planalto nos 28 meses que faltam até ao final do mandato. A contabilidade actual indica que há já 48 senadores que declararam o seu voto a favor do impeachment, mas os partidários do Governo Temer esperam que, no final, Dilma seja destituída com cerca de 60 votos. Com o seu destino traçado, resta à Presidente suspensa de funções ir a julgamento “marcar a sua posição para a história política brasileira”, diz Adriano Oliveira, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife.

O que por estes dias se disser e decidir em Brasília vai deixar marcas indeléveis. “A história não termina dia 29 [o dia em que Dilma se vai defender perante o Senado]. Ela começa dia 29”, disse há uma semana Lula da Silva à BBC. Ao contrário do impeachment que, em 1992, afastou o presidente Collor de Mello, o que agora está em causa é um processo no qual é difícil estabelecer a fronteira entre o “crime de responsabilidade” e a vontade política da maioria dos senadores. Se está provado que Dilma autorizou as “pedaladas fiscais” (manobras contabilísticas para esconder a real dimensão do gasto público sem aprovação do Congresso), o seu comportamento não foi diferente do de outros presidentes do governo federal ou dos governos estaduais. O que está então em causa? “Dilma não fez a gestão da complicada situação económica no Congresso” e tem de assumir os custos políticos do processo Lava-Jato, uma operação de corrupção estimada em dois mil milhões de euros e baseada na estatal Petrobras, diz Adriano Oliveira. “Sem Lava-Jato, com a economia a correr bem e com mais apoio nos inquéritos de opinião, não haveria impeachment”, sublinha este académico.

Como reconheceu em Julho Rose de Freitas, a líder da bancada do Partido do Movimento Democrático do Brasil (PMDB) – o partido de Miguel Temer –, “na minha tese, não teve esse negócio da pedalada, o que teve foi um país paralisado, sem direcção e sem base nenhuma para administrar”. O que está implícito nesta declaração é que o “crime” das pedaladas foi instrumental para se organizar um julgamento político que se vai sobrepor à vontade popular expressa nas últimas eleições. Daí que o Partido dos Trabalhadores (PT), de Dilma Rousseff e de Lula da Silva sustente que o que está em causa é um “golpe” parlamentar. Lula chegou a apelar à intervenção da ONU e um pouco por todo o mundo a esquerda olha para o que se passa no Brasil e denuncia “o controverso processo de impeachment que mais parece um golpe de Estado”, como referiu há semanas Bernie Sanders, que disputou com Hillary Clinton a nomeação dos democratas às presidenciais americanas. O respeito pelos procedimentos constitucionais imposto pela maioria dos deputados e senadores leva, no entanto, Adriano Oliveira a recusar a existência de um golpe.

Dilma e os seus aliados foram, porém, mostrando incapacidade de fazer vingar os seus pontos de vista. A Presidente suspensa não conseguiu segurar a base parlamentar que a apoiava no Governo e sucumbiu à votação na Câmara dos Deputados, em 17 de Abril, que deu início ao processo. Mesmo mantendo uma base de apoio popular aguerrida (o “Fora Temer” não passou ao lado dos Jogos Olímpicos), esteve longe de erguer uma vaga de fundo nas principais cidades. E, questão tida por crucial entre os seus apoiantes, Dilma e os pares reúnem a hostilidade da maior parte da imprensa brasileira.

Dilma sabe disso e já percebeu a sua sorte – nos últimos dias acelerou o ritmo de retirada dos seus bens de Brasília, com destaque para a sua biblioteca. Mas não se rende sem luta. “Lutei contra a ditadura, lutei contra o cancro e agora vou lutar contra qualquer injustiça, disse esta semana num fórum em São Paulo. Para ela, o que está em causa é “um julgamento fraudulento, que tem como objectivo fazer uma eleição indirecta”. Mas, por ser também um julgamento perdido, Dilma tentou nas últimas semanas evitá-lo ou, ao menos, adiá-lo. Recorreu ao Supremo Tribunal para anular o julgamento no Senado, e perdeu. No dia 17 lançou a ideia de um plebiscito para se anteciparem as eleições, que até a cúpula do PT rejeitou esta semana. E as suas tentativas de adiar o julgamento tiveram o mesmo resultado.

A corrupção como pano de fundo

A estratégia do adiamento tinha por base a convicção de que, tarde ou cedo, o Lava-Jato acabaria por atingir em cheio o coração do Governo de Michel Temer. Em parte, essa expectativa foi cumprida. Depois da sua tomada de posse, a 12 de Maio, o actual Governo já perdeu três ministros por suspeitas de ligação ao esquema de corrupção da Petrobras. E o próprio presidente interino foi denunciado pelo empresário Marcelo Odebrecht (que está preso) como tendo sido o autor de um pedido de financiamento ilegal de 10 milhões de reais para a campanha eleitoral de 2014. Temer negou a acusação.

Mas, ao mesmo tempo, os estilhaços do Lava-Jato acabaram por minar a estratégia de Dilma e do PT. Lula da Silva foi acusado de obstrução à Justiça, por alegadamente ter pressionado um antigo quadro da Petrobras a não cooperar com a investigação. E a própria Dilma acabou colocada numa situação semelhante à de Michel Temer na delação de Marcelo Odebrecht. De acordo com o empresário que controla um gigante mundial da construção, Dilma terá pedido 12 milhões de reais para financiar a campanha da PT.

Com a passagem das semanas, todas as portas se foram fechando e se há bolsas de resistência ao “golpe” nas zonas mais pobres, na classe média urbana, na academia e em elites insuspeitas de ligação ao PT (Bresser Pereira, ex-ministro de José Sarney e de Fernando Henrique Cardoso, é um entre muitos), Dilma continua a ser avaliada negativamente pela população. No último inquérito do Ibope, de final de Maio, 69% dos inquiridos consideravam o seu desempenho mau ou péssimo – Temer só tinha o apoio inequívoco de 13% dos brasileiros. A conjuntura também não a ajuda: a economia vai recuar 3% este ano, mas deve recuperar em 2017; a produção industrial cresce há quatro meses; a inflação está alta, mas a desacelerar; a subida do desemprego é mais modesta; e a bolsa não parou de subir desde que Michel Temer chegou ao poder.

Para agravar o cenário de Dilma e do PT, o Governo tem sido capaz de ir aumentando a sua base de apoio no Senado – muitas vezes negociando cargos ou concedendo obras nos estados de senadores hesitantes. E foi adiando medidas polémicas do seu programa virado para a liberalização da economia e para o controlo das contas do Estado. Hoje deverá ser anunciado um pacote de empresas a privatizar. Mas a emenda constitucional que restringe os gastos do Estado à inflação do ano anterior ou o aumento dos funcionários públicos vão ter de esperar que os ânimos políticos se acalmem. Quando a era Dilma/PT for varrida do mapa. Na Primavera austral de 2018, quando, como se julga, Lula se candidatar de novo, ver-se-á se por muito tempo.

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