Depois de três décadas a impedir nascimentos, a China precisa de bebés

No primeiro ano após o fim da política do filho único, o número de nascimentos subiu, mas não o suficiente para travar o envelhecimento chinês. Para trás fica uma herança de abusos contra milhões de famílias, que contou com a conivência ocidental.

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Desde o início do novo século que não nasciam tantas crianças na China. Em 2016, registaram-se 18,46 milhões de nascimentos no território continental, e 45% são segundos filhos, revelou a Comissão Nacional de Planeamento Familiar na semana que passou. Num primeiro balanço do impacto do fim da “política do filho único”, que durante mais de três décadas proibia a grande maioria dos casais chineses de terem um segundo filho, nasceram mais 11% de bebés no ano passado do que em 2015.

Foi a certeza de que a China estava numa rota de envelhecimento da população que levou o Governo a acabar com a medida no final de 2015, mas é provável que se possa reverter a tendência.

Durante 35 anos, o regime chinês levou a cabo aquilo que especialistas como Mei Fong, autora do livro One Child, classificou como “a mais radical experiência social do mundo”. Para impedir e penalizar uma segunda gravidez, as autoridades recorriam a um rol de abusos, que incluíam multas pesadas, despedimentos, demolições de casas, abortos e esterilizações forçadas. O controlo populacional extremo era o preço a pagar para colocar o país mais populoso do mundo na rota do desenvolvimento, diziam os defensores do “filho único”.

Três décadas depois, a China percebeu que precisa de mais crianças para preservar a prosperidade. Na verdade, o controlo da natalidade pelo Governo permanece. A “política do filho único” foi substituída por uma “política de dois filhos”, que as autoridades dizem garantir uma recuperação dos níveis de natalidade, sem arriscar um “descontrolo”. A taxa de fertilidade das mulheres chinesas está em 1,6 filhos, bem abaixo da substituição geracional, e a maioria dos demógrafos diz ser muito improvável que o fim a política de filho único possa inverter a tendência de envelhecimento.

"Wan, xi, shao” 

A China era um país muito diferente há 35 anos. A política do filho único começou a por ser aplicada como uma directiva interna do Partido Comunista em Setembro de 1980, que limitava os militantes a ter apenas um filho. A população estava então próxima dos mil milhões e cada mulher tinha em média quase três filhos.

Mas os esforços para conter a explosão demográfica já vinham de trás. No início dos anos 1970, foi lançado um programa de planeamento familiar que não pressupunha medidas tão extremas: passava quase em exclusivo pelo aconselhamento e distribuição gratuita de contraceptivos. Os pilares estavam contidos na fórmula “wan, xi, shao” (casamentos tardios, períodos mais longos entre filhos e menos filhos). O programa teve efeitos quase imediatos: entre 1969 e 1979, a taxa de fertilidade caiu de 5,9 para 2,7.

A queda não foi suficiente para refrear os receios da cúpula do Partido Comunista, que olhava para o crescimento populacional como o grande obstáculo à prosperidade económica. O regulamento para os militantes acabou por ser alargado a todos os casais, que passaram a ser proibidos de ter um segundo filho.

Entre os demógrafos chineses, e não só, debate-se se a queda da natalidade registada na China nas últimas décadas não seria alcançada de igual forma caso não tivesse sido posta em prática uma política tão restrita. Países da região com históricos demográficos semelhantes registam hoje taxas de fertilidade tão ou mais baixas, como a Malásia (1,9) ou da Tailândia (1,5). O Governo chinês garante, contudo, que os 35 anos desta política terão evitado 400 milhões de nascimentos e, desta forma, possibilitado o crescimento económico inédito da última década. No entanto, este cálculo é disputado por grande parte da comunidade científica..

Política de abusos

Para cumprir a meta do filho único, o Estado chinês recorria a diferentes níveis de sanções. Às multas, que podiam chegar ao congelamento da totalidade dos salários, juntava-se por vezes o despedimento do cabeça de casal. Outras vezes, a casa da família era demolida. Em última análise, as autoridades podiam obrigar as mulheres a realizarem abortos ou esterilizações. Em 1984, por exemplo, chegaram a registar-se mais de 20 milhões de esterilizações na China e quase 15 milhões de abortos, de acordo com o Ministério da Saúde.

Foi montada uma burocracia estatal com cerca de um milhão de funcionários espalhados por todo o país para supervisionar o cumprimento da política, desde a maior das cidades até à mais recôndita aldeia. Em algumas regiões, as mulheres eram obrigadas a fazer testes à urina de três em três meses. Caso não o fizessem, poderiam incorrer numa multa.

O cumprimento cego de “quotas de nascimentos” levava a abusos violentos. Nicholas Kristof, que foi chefe da delegação do New York Times em Pequim nos anos 1990, conta um episódio de uma mulher que estava grávida de sete meses do primeiro filho, e portando não estava a violar a violar a política, quando as autoridades locais a levaram para uma clínica onde lhe foi induzido o parto. A família alertou para o estado frágil da mulher, mas os funcionários da agência de controlo de natalidade queriam que o nascimento se desse antes do final do ano, uma vez que as quotas de 1992 ainda estavam por completar e receava-se que as do ano seguinte ficassem rapidamente esgotadas. A mulher acabou por perder o filho e ficou com lesões permanentes.

Para além de gerar histórias como esta, a política do filho único foi ainda responsável indirecta pelas cerca de 120 mil crianças chinesas dadas para adopção no estrangeiro durante as últimas décadas, sobretudo meninas. A preferência ancestral das famílias pelos filhos rapazes remonta à grande dependência da generalidade das famílias em relação à agricultura, que ainda hoje é regra no interior da China, embora com cada vez menos peso, e também à segurança que os filhos homens dão aos pais durante a velhice. Quando casam, as mulheres passam a ter como prioridade a família do marido, sem poderem muitas vezes dar apoio aos próprios pais.

Se esta preferência era pré-existente, a política do filho único intensificou-a. Na impossibilidade de ter mais do que um filho, os casais tudo faziam para que fosse rapaz. Por vezes, os pais dão às filhas nomes como Laidi ou Yindi, que significam “traz um pequeno irmão”, colando desde logo à primogénita o rótulo de indesejada.

“Nos primeiros anos da minha vida, eu era ilegal e invisível — escondida num saco de compras, diziam-me para ficar silenciosa no andar de cima da casa, sempre no escuro.” O relato é de Ricki Mudd, uma das crianças chinesas adoptadas durante os anos 1990, que transformou a sua própria história num documentário. Quando nasceu, os pais biológicos chamaram-lhe Mengting, uma combinação das palavras “sonho” e “pausa”.

Apoio ao controlo

Externamente, a política do filho único não foi alvo de uma crítica inequívoca — ao contrário de outras reformas com um impacto social amplamente negativo, tal como o chamado “Grande Salto em Frente” ou a Revolução Cultural. Em 1983, o secretário-geral das Nações Unidas, Javier Perez de Cuéllar, entregou uma distinção ao responsável pela política, Qian Xinzhong, saudando os esforços do Governo chinês para “juntar os recursos necessários para pôr em prática políticas populacionais em grande escala”.

São muitos os que viram algumas vantagens numa política tão extrema como esta. A limitação a apenas um filho foi vista como uma forma de retirar das mulheres a pressão para serem mães a tempo inteiro, dando-lhes oportunidade para entrar no mercado de trabalho. Antes da introdução da política, apenas 30% dos estudantes universitários eram do sexo feminino; para a geração nascida no início dos anos 1990, a paridade é quase perfeita, de acordo com Ye Liu, especialista da Universidade de Bath (Reino Unido). 

Entre alguns sectores ambientalistas, o controlo populacional extremo é encarado como um método desejável para conter a acção humana sobre os processos de alterações climáticas. A filósofa Sarah Conly, por exemplo, defende no seu livro One Child: Do we Have a Right to More? (Um filho: teremos direito a mais?) que a humanidade tem a obrigação de travar o crescimento populacional e que, nesse sentido, seria “moralmente admissível que um Governo aprovasse legislação que restringe o número de crianças que um casal pode ter”.

Ao longo das três décadas de aplicação, a política do filho único foi sofrendo várias alterações. Logo em 1984, os casais nas regiões rurais passaram a ter permissão para ter um segundo filho, caso o primeiro fosse uma rapariga. Mas as maiores alterações aconteceram a partir de 2010, quando se descobriram 13 milhões de crianças não registadas. Três anos depois, os casais em que ambos fossem filhos únicos foram autorizados a ter dois filhos, permissão alargada a todos os casais há um ano.

A liderança chinesa começou a perceber que tem pela frente um novo problema demográfico, oposto ao que existia quando a política do filho único começou a ser aplicada. A população deverá continuar a crescer até 2030, ano em que será atingido o pico de 1,4 mil milhões de pessoas – uma meta que há dez anos era de 1,5 mil milhões. Mas o grande problema é o envelhecimento populacional.

Em 2050, é possível que por cada 100 pessoas em idade activa haja 45 com mais de 65 anos, muito próximo dos valores actuais do Japão, por exemplo. Para reverter a tendência, os dirigentes da Comissão Nacional de Planeamento Familiar estimam que teriam de registar-se cerca de 20 milhões de nascimentos todos os anos até 2020, algo que o primeiro balanço mostra ser difícil de alcançar.

Uma sondagem recente revela que 75% das famílias inquiridas se mostra indisponível para ter dois filhos. A sociedade chinesa tem uma herança de 35 anos de limitações ao número de filhos para derrubar. 

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