“Dar mais poderes ao Parlamento Europeu não diminuiu o défice democrático” da UE

Para Joseph Weiler, há um problema de concepção na estrutura da União Europeia: os cidadãos não elegem quem os governa nem determinam a direcção das suas políticas.

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Rui Gaudêncio

Por que é que os líderes europeus nunca assumem as responsabilidades na degradação do projecto europeu?
A cultura em que ninguém se sente responsável por nada também se estende aos governantes. Os governos dizem que tudo o que corre mal a culpa é da UE. A UE diz que a culpa é dos Estados-membros. Quem é que está a fazer introspecção e a pensar: “Em que momento é que escolhemos o caminho errado que explica o “Brexit”? Ninguém. Estão todos a dizer: “A culpa é destes britânicos terríveis, eles é que nunca quiseram nada, e agora vão sofrer”.

E quais foram os caminhos errados?
Falemos então da UE. Digo-lhe qual foi o mais fundamental. Nos anos 1960, 70 e mesmo depois toda a gente entendia que havia um défice democrático na CEE. Achava-se que isso acontecia porque o Parlamento Europeu não tinha poderes. Para corrigir isso era preciso dar-lhe plenos poderes. Mas há aqui um problema de concepção. Porquê? Porque não entende o essencial na democracia. Se olharmos para o aconteceu entre 1979, a primeira vez que houve eleições directas para o Parlamento Europeu, e 2004, quando foi aprovado o Tratado de Lisboa, vemos que a cada revisão dos tratados, os poderes do Parlamento aumentaram sempre. Mas a cada eleição, menos e menos eleitores votaram – em 1979 foram 65%, em 2014 menos de 40% e em alguns países foram apenas 20%, a mais baixa participação de sempre. Como é que explicamos isto? Eu tenho uma explicação muito simples.

Que é?
Em todos os sistemas há duas condições essenciais para a democracia. Uma é que se não gostarmos do Governo podemos mudá-lo, pelo menos uma vez a cada quatro ou cinco anos a maioria tem o poder de decisão. A escolha política está no cerne da democracia. A segunda condição é que se um número suficiente de pessoas votarem de uma determinada forma essa preferência vai traduzir-se em políticas: se o Governo for de centro-esquerda será diferente de um Governo de centro-direita. Na estrutura da UE estas duas condições não existem. Quando elegemos o Parlamento Europeu não determinamos quem governa. E ninguém foi capaz de demonstrar que ao mudar a maioria no Parlamento Europeu a direcção das políticas mude. Não é uma questão de défice democrático, o que há é um défice político. A democracia sem política não é democracia. A democracia sem escolha não é democracia. E o povo é sábio e é por isso que não vota. Porque haveria de votar se não pode decidir sobre estes dois aspectos essenciais: sobre quem o governa e como é governado.

É por isso que o slogan mais inteligente da campanha do “Brexit” foi “Take back control” (Reconquistar o controlo). Mas quem é que hoje, na reacção referendo admite que o sistema democrático na UE é defeituoso, que as pessoas sentem que não têm poderes?

Alterar isso obrigaria a UE a grandes reformas quando ninguém quer mudar quase nada.
Pois, em vez disso, estão a dizer: vamos fazer coisas que possamos concretizar e que levem as pessoas a perceber que a UE vale a pena

Os projectos sobre defesa europeia, a aposta no emprego jovem…
Sabe quem inventou isso? O Império romano. Chamou-lhe pão e circo. O pão muda, o circo muda, mas é a mesma coisa. Se a nossa reacção ao “Brexit” é pão e circo… Se me pergunta o que correu mal, posso dar-lhe uma lista longa, mas a coisa mais importante é a UE não perceber não perceber que dar mais poderes ao Parlamento Europeu não diminuiu o défice democrático. A UE tem enormes poderes – e eu sou um europeísta convicto, é um projecto nobre – mas tem este mal-estar no seu centro e as pessoas têm medo de politizar a União, mas isso é uma condição para a democracia.

Esse era um dos argumentos da campanha pelo “Brexit”: é impossível reformar a UE, precisamos de sair.
O facto de terem sido eles a dizê-lo não significa que seja errado. Eu apenas discordo da opinião que é impossível reformá-la. Certamente é impossível se não fizermos uma análise correcta do que está errado. E se a nossa resposta é só pão e circo, isso não vai funcionar, porque as pessoas se preocupam com outras coisas. As pessoas querem sentir que têm poder, querem que exista esta combinação de democracia e liderança.

Falava da importância do patriotismo, de as pessoas têm de se sentir que fazem parte de uma comunidade.
Sim, e de não se sentirem envergonhadas de serem patriotas.

Isso cria uma contradição no quadro de uma união que procura mais integração.
Não há contradição. Essa é a essência da União, é essa a sua originalidade, é por isso que é diferente de um Estado federal. É uma das razões porque não gostei da transição [efectuada pelo Tratado de Maastricht] da designação de “Comunidade” para “União”. Aquilo que a UE conseguiu é algo que nunca existiu em lado nenhum ou em momento nenhum da História – a de termos um nível elevado de integração e ao mesmo tempo Estados-membros muito robustos, um sentido muito forte de identidade nacional, de especificidade cultural que não é contraditório com mais integração, desde que seja feito de forma voluntária, desde que haja limites. E isso é outra coisa que correu mal – falamos de direitos fundamentais, mas não de limites fundamentais e este discurso perdeu-se. Hoje em dia qualquer coisa que a União queira fazer, parece puder fazer.

Sim, o excesso de regulamentação...
Exacto. É um erro fundamental que foi feito. Já escrevi sobre isso ad nauseam e ad tedium. Os direitos fundamentais e os limites fundamentais são ambos muito importantes para a UE. Tem de haver a noção de que há coisas que não são da sua competência. Mas não há uma contradição. Quem tem irmãos sabe que todos têm uma vida autónoma, diferente da nossa, mas não deixamos por isso de ser uma mesma família.

Essa é uma palavra muito importante, estamos sempre a falar da família europeia. Mas nos últimos anos essa noção esbateu-se. O irmão mais pobre não foi bem tratado pelos outros.
Pois não. Isso é o resultado de décadas de negligência. Há 20 anos que falo de família, da necessidade de cultivar a solidariedade na Europa. São os agraços (uvas amargas) de que o profesta Isaías falava. Estamos a comê-las após anos de negligência. O projecto de cidadania europeia falhou e porquê? Porque 90% do projecto se focava na mobilidade, na liberdade de circulação. Eu defendo a liberdade de circulação, mas isso não é um projecto mobilizador. Sabe qual é a percentagem da população europeia que vai trabalhar para outro país? 7%. Para a maioria das pessoas, ter de ir para outro país é uma solução de recurso. As pessoas querem viver no seu país, ver os seus filhos e netos a crescer, viver na sua comunidade, apoiar a sua equipa de futebol, mas de repente as condições económicas pioram e têm de se mudar. Isto é uma necessidade, não é algo que seja mobilizador. Mas foi nisso que se baseou o projecto de cidadania.

E o que devia estar no cerne da cidadania?
Exactamente aquilo que eu lhe falava. Responsabilidade mútua. Ter a coragem, que nenhum político europeu teve ou tem, de propor um imposto europeu. Os impostos são mais importantes do que o voto na política. Deixe-me dar-lhe um exemplo. Nos anos de 1980, nos EUA, o estado do Texas teve o mesmo tipo de crise bancária que afectou a Irlanda – excesso de exposição ao sector privado. Tal como na Irlanda houve o risco de todo o sistema bancário colapsar. Na altura houve o mesmo debate que houve agora na UE – “se os ajudarmos, os banqueiros vão voltar a fazer o mesmo, se não os ajudarmos quem vai pagar são os pequenos depositantes, não os grandes” – mas com uma diferença, ninguém na Califórnia duvidou se devia ajudar ou não os texanos.

Por solidariedade?
Não, por dinheiro. Porque não era dinheiro californiano, era dinheiro americano. Mas nós não temos dinheiro europeu. Os impostos têm um enorme simbolismo político. Eu detesto a situação em Espanha, onde o País Basco paga a Madrid pelos serviços federais – aquilo que recebemos de vocês é pago, se houver um sismo na Andaluzia isso não é problema nosso. O dinheiro, os impostos têm um enorme significado político. Os impostos também criam responsabilidade. As pessoas votariam para o Parlamento Europeu, iriam querer saber o que eles estavam a fazer com o dinheiro do imposto que pagaram. Querem cidadania europeia, então criem uma taxação europeia. Não é popular, mas às vezes é preciso fazer coisas que não são populares.

Actualmente é quase impossível um político fazer uma proposta dessas…
Sim, hoje é. Mas há 15 anos, quando havia dinheiro a circular em abundância e optimismo era mais fácil. Estamos sempre a discutir como é actualmente difícil fazer coisas. Mas quando me pergunta o que correu mal eu digo-lhe que houve condições para criar dinheiro europeu. Só que a Europa fez aquilo que os gregos fizeram, nos bons tempos não pensámos nos tempos maus que podiam surgir

Falemos do futuro. Há quem diga que 2017 pode ser um ano pior do que 2016, para a Europa e não só
Em relação ao Trump, o que é realmente devastador é o facto de tantos americanos terem votado nele, de o terem eleito. Mas em relação ao que ele irá fazer, não podemos saber porque ele propõe coisas tão contraditórias, tem uma personalidade tão volátil, não sei o que ele poderá fazer. Em relação à Europa, temos quatro eleições importantes – provavelmente em Itália, depois do fiasco do referendo, na Alemanha, em França e na Holanda. E não sabemos o que pode acontecer. A única coisa que sabemos com certeza é que não podemos acreditar no que dizem as sondagens.

Em relação ao referendo britânico disse que a campanha foi pior para a UE do que o desfecho. O mesmo pode ser dito em relação às eleições holandesas ou francesas?
Sim, é o discurso do “Brexit” – o que é bom para nós, o que é mau para nós. A minha esperança são os jovens. Quanto mais jovens são os eleitores menos votam em partidos como estes. Não sei o que acontecerá em 2017, mas temos de depositar a nossa esperança nos mais novos. Porque os mais jovens não estão dispostos a perder a UE. Para eles, a Europa é uma comunidade de destino. A ideia de sair da UE, de deixar de ser cidadãos europeus é inconcebível para alguém com menos de 40 anos.

Com estas crises, esta falta de responsabilização de confiança, ainda há esperança para o projecto de integração?
O artigo que escrevi para o El PaísQué te há pasado, Europa (8/6/2016) – terminava com uma nota de esperança, porque ter esperança não é ter certeza, mas eu acho que somos uma comunidade de destino, quer queiramos, quer não. É por isso que uma saída ordenada do Reino Unido da UE é do interesse de todos, porque muda o discurso e confronta os outros países com a questão: quer realmente sair? A minha esperança é que a maior parte diga não. E a alternativa da esperança num sonho é o pesadelo e para mim a desintegração da UE é impensável, é um pesadelo.

É o regresso aos anos de 1930 de que tanta a gente fala.
Não, não estamos em 1939, estamos em 1914. Em 1939 toda a Europa sabia o que aí vinha, foi tudo muito transparente. Em Fevereiro de 1914, se perguntasse a qualquer pessoa se haveria guerra na Europa dentro de seis meses, as pessoas diriam que estávamos a sonhar acordados. Para mim, isto é mais parecido com 1914, com o que aconteceu há cem anos.

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