Coreia do Norte – o risco e a ilusão

Bastará, por agora, sensibilizar para a natureza muito complexa e pouco linear da questão norte-coreana, em que as estratégias ocidentais são, em minha opinião, erradas.

anteriormente (23.5.2016) abordei nesta coluna a questão da Coreia do Norte, pelo que tentarei não me repetir substancialmente. O mundo acorda em exagerado delírio discursivo em cada vez que esse país realiza mais um ensaio nuclear (5 entre 2006 e 2016) ou um teste de mísseis de alcance médio ou intermédio (já 4 desde o início deste ano). Essa reação de medo é desproporcionada e, de facto, é esse o objetivo do regime norte-coreano. Em grande parte a agressividade teatral da Coreia do Norte é uma coreografia de coação psicológica sobre o mundo, bem como de extorsão para obter ajuda material do exterior que é indispensável para a sobrevivência do regime e de parte da sua população. A Coreia do Norte parece ter um raciocínio primitivo mas neste jogo é extremamente inteligente e nele vence o mundo consecutivamente ao longo dos anos.

Não, o regime norte-coreano não pretende atacar com mísseis nucleares outros países. Mas sabe que necessita de ter essa capacidade e de manter uma postura exuberantemente agressiva (com todo o respeito nesta comparação, como o cão que ladra porque não quer morder), para assustar, para se tornar temido e, assim, se proteger de tentações dos inimigos que abundam. È um jogo de dissuasão de potenciais agressores.

Esse jogo é astuto e eficiente. De tal modo que os países que mais detestam e mais gostariam de aniquilar a Coreia do Norte são aqueles que (obrigados pela estratégia de coação norte-coreana) afinal ajudam o regime a sobreviver sistematicamente. Trata-se de um paradoxo espantoso. Esses países que ajudam o regime a sobreviver são, afinal, os Estados Unidos, o Japão, a Coreia do Sul e a China. Sim, o disfuncional regime norte-coreano é brilhante neste jogo, que ganha a todos.

Todos os testes nucleares e de mísseis importantes tiveram lugar em momentos bem pensados em que algum relevante acontecimento externo ocorria. O teste de um míssil há dias realizou-se antes de se iniciar o primeiro encontro entre os presidentes da China e dos Estados Unidos, em que o tema norte-coreano seria central. Nada sucede aleatoriamente.

São os países (inimigos) que acima citei que todos os anos fornecem à Coreia do Norte enormes quantidades de petróleo, alimentos e apoio financeiro que permitem que o regime sobreviva, que exista energia para o país funcionar devidamente e para que parte da população não tenha fome (esta é a altura do ano pior na produção interna de alimentos, após o esgotamento do produto das colheitas do ano anterior e antes das primeiras colheitas da primavera).

É necessário compreender esta complexa realidade para que também se perceba por que motivos a estratégia ocidental e regional é estruturalmente errada. A solução possível, inteligente e eficiente teria que ser bastante diferente. Assim, tudo continuará a ser uma ilusão, uma irrelevante peça de teatro em que todos participam com a mediatização política e pessoal que adoram.

A Coreia do Norte não tem aliados nem amigos influentes. Teve o apoio passado da China mas esta já há muito esgotou a paciência com as tropelias daquele regime, que detesta. Pelo contrário, a Coreia do Norte tem inimigos muito poderosos, inclusive às suas portas, que tentam encontrar uma forma de eliminar o seu regime. Este sabe que tem que dissuadir tais tentações. Num momento de fraqueza o regime norte-coreano será eliminado. Por isso sabe que não pode ter um único momento vulnerável. A sua principal força dissuasora é a nuclear.

Mas ter armas nucleares num local da Coreia do Norte não constitui um perigo imediato para os seus inimigos. Uma arma nuclear só assusta os inimigos quando se possui uma forma de a fazer chegar a território desses inimigos. Essa é a função dos mísseis que os norte-coreanos desenvolvem e exibem em testes, com alcance que permita atingir outros países. A verdade é que a Coreia do Norte tem progredido espetacularmente na sua tecnologia de mísseis. Possui já mísseis de alcance médio e intermédio que permitem atingir a Coreia do Sul e o Japão e desenvolve 2 mísseis balísticos intercontinentais (Taepodong-2 e Taepodong-3) com capacidade para atingir o território continental dos Estados Unidos e mesmo a Europa. A estratégia nuclear e de mísseis associados é, na verdade, o seguro de vida e de segurança do regime norte-coreano. Este contencioso tem uma solução mas com uma abordagem completamente diferente das atuais.

É possível estabelecer um bloqueio naval à Coreia do Norte mas isso criaria dois novos riscos críticos. Sanções não funcionam e são uma utopia de políticos impreparados e pouco imaginativos. É exequível estabelecer uma presença naval no oceano ao largo da Coreia do Norte, equipada com mísseis Aegis de interseção de mísseis provenientes daquele país, assim protegendo alvos como o Japão. Mas mísseis disparados sobre a Coreia do Sul são mais dificilmente atingíveis. Acresce que a Coreia do Norte, consciente da possibilidade de interseção aérea de mísseis seus num ataque futuro, teve a astúcia de adaptar uma parte dos seus cerca de 70 submarinos para, de surpresa, dispararem mísseis nucleares de qualquer local indeterminado do oceano, inclusive mísseis intercontinentais. Os submarinos de classe Shark, mas especialmente os mais modernos Gorae, estão a ser adaptados em duas bases especiais, Sinpo e Mayang-Bo e representam um temível fator de incerteza para os seus inimigos.

Como referi, a sobrevivência deste regime exige os avultados auxílios materiais que os seus inimigos se veem forçados a prestar-lhe (o que é irónico e, admitamos, genial). Parece, assim, óbvio que seria fácil resolver o problema norte-coreano simplesmente deixando de lhe entregar esses contributos materiais, o que levaria o regime a implodir. Mas a realidade é estranhamente diferente da aparente lógica. Todos temem tal implosão. Milhões de refugiados chegariam às fronteiras da China e da Coreia do Sul, cenário instabilizador que estes países nem querem imaginar. No caos de um colapso do regime poderiam, em desespero, ser disparados mísseis nucleares sobre países onde, em horas, milhões de pessoas poderiam morrer. Poderia ser dantesco. Por exemplo, Seul, a capital sul-coreana a apenas 56 km da Coreia do Norte, tem uma população de 10 milhões e a sua região é povoada por 50 milhões.

A China está cansada das loucuras dos dirigentes norte-coreanos. Mas um súbito colapso do regime também tornaria inevitável a reunificação das duas Coreias, o que significaria, nas fronteiras chinesas, um novo país em que estariam presentes abundantes forças militares norte-americanas. Com Trump, em quem ninguém na região confia, esse cenário seria particularmente duvidoso. A Coreia do Norte é, de certo modo, uma zona-tampão entre a China e a presença militar americana na Coreia do Sul.

Sanções ou uma pressão crítica sobre a Coreia do Norte exigiria dela a desesperada procura de receitas alternativas. A venda de mísseis, bombas nucleares, bombas radiológicas, materiais e tecnologia nucleares tem clientes ansiosos em países específicos e, pior que tudo, em movimentos terroristas como a ISIS e a al-Qaeda, que têm, desde há muito, desenvolvido contactos nesse sentido. O risco do terrorismo nuclear no mundo poderia dar um salto qualitativo muito rapidamente. O mundo não tem a noção de como estamos perto dessa possibilidade pavorosa.

Muito mais se poderia especificar sobre esta temática. Bastará, por agora, sensibilizar para a natureza muito complexa e pouco linear da questão norte-coreana, em que as estratégias ocidentais são, em minha opinião, erradas. A abordagem mais eficiente, mas mais discreta, seria outra.

 

 

 

 

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