Contra a banalização do mal

A previsível vitória de Macron não irá curar magicamente a França da sua depressão e das suas terríveis divisões.

Logo à noite, salvo a mais extraordinária surpresa destes tempos pós-modernos e propícios a acontecimentos inverosímeis, Emmanuel Macron será o novo Presidente francês. Mas este muito previsível resultado não irá curar magicamente a França da sua depressão e das suas terríveis divisões: a França próspera dos grandes centros urbanos mais cosmopolitas — sobretudo Paris — e a França empobrecida, colérica e marginalizada dos campos e dos subúrbios mais expostos às fracturas sociais. Como o Midwest americano — e a chamada “cintura da ferrugem” —, que deu a vitória a Trump, foi esta França que sustentou o fenómeno Le Pen, depois de ter também favorecido o desempenho inesperado do esquerdista Mélenchon na primeira volta das presidenciais.

Ora, independentemente do resultado final da candidata da Frente Nacional (FN), ela fora já legitimada por uma importante adesão popular, banalizando a existência de um partido da extrema-direita nacionalista, xenófoba e antieuropeia na paisagem política francesa. Ao contrário do que aconteceu há 15 anos, quando se formara uma frente republicana da esquerda à direita contra a candidatura de Jean-Marie Le Pen face ao gaullista Jacques Chirac, desta vez não se verificou um idêntico sobressalto cívico e foi em ordem bastante dispersa que se manifestaram as intenções de voto na segunda volta.

Mélenchon, que em 2002 apelara ao voto em Chirac, recusou-se agora a repetir o gesto em relação a Macron, limitando-se a dizer que nunca votaria em Le Pen, e grande parte dos seus eleitores na primeira volta estavam inclinados a abster-se ou votar em branco (o que, naturalmente, tenderia a favorecer a candidata extremista). Já a transferência de votos a favor de Le Pen por parte de uma parte significativa da antiga direita gaullista, radicalizada pela candidatura de Fillon — e não foi por acaso que Marine plagiou descaradamente, ipsis verbis, um dos seus discursos —, acabou por ser dada como quase natural e inevitável. Enquanto há 15 anos Chirac obteve mais de 80% dos votos frente a Le Pen pai, muito dificilmente Macron teria hoje mais de 60% contra Le Pen filha. Ou seja: a extrema-direita poderia sair das urnas confortada com o apoio de mais de um terço do eleitorado francês.

Nem o facto de ter sido claramente esmagada no derradeiro debate televisivo com Macron terá contribuído para alterar esta relação de forças entre as duas Franças. A animosidade contra o candidato pró-europeu, apontado como porta-estandarte do capital financeiro, revelou-se tão forte à esquerda e à direita — dentro e fora de França — que nem o velho sentimento antifascista foi suficiente para separar decisivamente as águas. A banalização do mal representado pelo protofascismo lepenista tenderia, assim, a “normalizar” — como acontece com Trump, Putin ou Erdogan — a tentação autoritária, as teorias da conspiração, os “factos alternativos” e as mentiras mais grosseiras que caracterizam esse discurso.

Um insuspeito esquerdista, o antigo ministro das Finanças grego Varoufakis, apesar das suas distâncias confessas em relação ao que considera ser o neoliberalismo de Macron, escreveu recentemente que seria no mínimo “escandaloso para qualquer progressista” colocá-lo no mesmo plano que Le Pen. E Varoufakis recordou ainda: “Quando a troika dos credores da Grécia e o Governo de Berlim estrangulavam as tentativas do nosso Governo de esquerda recentemente eleito para libertar a Grécia da asfixia da dívida, Macron foi o único ministro de Estado na Europa a fazer todo o seu possível para ajudar-nos. E fê-lo assumindo um risco político pessoal.” Uma confissão de leitura útil também em Portugal.  

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