Chipre: os erros da UE e da ONU

Sem um acordo, gostaria a UE de assistir a uma futura nova guerra no seu seio, em parte consequente da sua inabilidade política?

Chipre é um pequeno ponto no mapa mas é imprudente subvalorizar o seu contencioso, que se arrasta há cinco décadas. Enquanto os europeus olham conflitos distantes no mundo, fingem não ver aqueles que subsistem no seu seio. A tensão basca continua e só quem nunca percorreu a Irlanda do Norte ignora o ambiente de guerra e ódio nos bairros críticos de Belfast. Chipre integra a União Europeia (UE), apesar de se situar apenas a cerca de 260 km do Líbano. Mas representa uma história de conflito e mesmo de genocídios desde que, em 1960, se tornou independente. É uma ilha dividida sob tensão e ódio. É também uma história mal explicada aos europeus.

Ambas as comunidades cipriotas cometeram grandes erros mas, por forte inabilidade política, a União Europeia e a ONU acabaram por induzir dificuldades na procura de uma solução. Contudo, nos últimos dois anos um processo de intervenção da ONU tem sido mais eficiente e sensato.

A ilha de Chipre, então colónia britânica, tornou-se independente em 1960. Devido à conflitualidade entre as comunidades cipriota grega e cipriota turca (minoritária), a independência assentou num conjunto de tratados cujos signatários, para além de ambas as partes cipriotas, incluem o Reino Unido, a Grécia e a Turquia, como protetores das duas comunidades e garantes do cumprimento dos acordos. Estes países assumem a obrigação de assegurar “a independência, a integridade territorial e a segurança” de Chipre e o dever de “proibir qualquer atividade que promova a união de Chipre com outro Estado ou a divisão da ilha”.

Em 1967, uma junta militar toma o poder na Grécia e defende que Chipre seja absorvido por aquele país, sugerindo uma solução pela força. Em 1974 essa junta apoia um golpe de Estado em Chipre, que prepara a fusão com a Grécia. Verificam-se brutalidades entre ambas as comunidades. Aldeias são massacradas. Os cipriotas turcos estão em minoria. São violados os acordos da independência, garantidos pelo Reino Unido (que declinou intervir), pela Grécia (ela própria incumpridora) e pela Turquia. Neste contexto, a Turquia envia tropas para a ilha para proteger os cipriotas turcos. Separa as duas comunidades que se agridem, concentrando os cipriotas turcos em cerca de um terço da ilha, a norte, divisão que persiste até hoje.

A intervenção turca não foi uma “invasão” como é dito repetidamente à opinião pública. Apesar de erros, a Turquia interveio com legitimidade, pela sua obrigação, em tratado internacional, de evitar que Chipre fosse anexado por outro país e para proteger a comunidade cipriota turca. Essa ação turca permitiu que, hoje, Chipre seja independente e não uma província grega.

As duas partes da ilha viriam a ser governadas separadamente, cada uma com todas as estruturas normais em qualquer país, com escolas, hospitais, universidades, administração pública, segurança, governos e órgãos políticos popularmente eleitos. Em 1983 os cipriotas turcos declararam a independência, que só a Turquia reconheceu. Desde então a Grécia e a Turquia nesta matéria evoluíram positivamente, mas as comunidades cipriotas inviabilizaram sucessivos esforços negociais.

Entretanto um facto novo emerge, o interesse das duas comunidades cipriotas de aderir à União Europeia. Em Dezembro de 2002 a UE prepara-se para aprovar a admissão de Chipre, mas a confusão é enorme. Se Chipre aderir, quem entra de facto? A UE reconhece formalmente que a República de Chipre (cipriota grega) representa toda a ilha mas sabe que a adesão efetiva será apenas a do sul da ilha, porque só aí aquela república exerce real soberania, enquanto a área cipriota turca opera, há décadas, como um país distinto. Enfim, uma grande trapalhada. A UE percebe que se colocou numa posição impossível e que a única saída é a reunificação da ilha. Um plano de paz de Kofi Annan é apressado e proposto a ambas as partes cipriotas, escassas semanas antes da cimeira da UE que deverá aprovar a adesão de Chipre. É uma corrida contra o tempo.

Nesses dias, numa capital estrangeira, tenho um pequeno-almoço de trabalho com um ministro dos Negócios Estrangeiros para discutir esta questão. O texto da ONU é-me entregue na noite anterior. Tem quase 150 páginas. Não me deito a analisá-lo. O plano não é perfeito mas é bom. Mas é tão pormenorizado e extenso que é inexequível um acordo em poucas semanas. A precipitação da UE contribuiu para inviabilizar uma oportunidade para a reunificação. Confusa, a UE chega ao dia da cimeira sem acordo e, na prática, é admitida apenas uma parte da ilha, a cipriota grega.

Sempre defendi que o interesse, de cipriotas gregos e cipriotas turcos, em aderir à UE deveria ter sido usado para incentivar ambas as partes a aceitarem um acordo, como condição prévia para a adesão. Se apenas uma das partes entrasse na UE, esta importaria o conflito para o seio da União Europeia e, em lugar de o resolver, alimentá-lo-ia porque a parte admitida passaria a deter poderes de veto em posições europeias sobre a parte excluída. Parece óbvio e de básico bom senso. Mas a UE fez exatamente o oposto. Contribuiu, assim, para prolongar o contencioso.

Nova iniciativa é tentada antes da efetiva adesão de Chipre, em Maio de 2004. Um plano de reunificação, preparado pela ONU com apoio da UE, foi sujeito a referendo popular uma semana antes dessa data, em ambas as partes da ilha. O resultado foi devastador. Os cipriotas turcos aceitaram a proposta mas os cipriotas gregos votaram contra, após o seu Presidente, que ajudara a negociar esse plano, ter feito campanha pelo “não”. Isto é, a dias da adesão de Chipre o acordo foi destruído pelos cipriotas gregos, perante a incredulidade da UE e da ONU. Furioso, o comissário europeu para o alargamento disse sentir-se “enganado pelo governo cipriota grego”.

Dias depois, a parte cipriota grega, que rejeitou o acordo, foi premiada com a entrada na UE, enquanto a parte cipriota turca, que aceitou o plano apoiado pela UE, ficou excluída e mantida sob embargo. Será isto justo?

Após o referendo de 2004, os cipriotas turcos ganharam maior simpatia no mundo, por terem, pela sua parte, viabilizado o fim do conflito. Devemos integrá-los na UE e a via plausível é a reunificação. Cipriotas gregos e turcos devem flexibilizar-se. Sem um acordo, gostaria a UE de assistir a uma futura nova guerra no seu seio, em parte consequente da sua inabilidade política?

Um acordo final não é exequível no plano imediato, mas estamos mais próximos desse ponto, embora alguns dos diferendos mais sensíveis em negociação permaneçam em aberto, designadamente algumas questões territoriais, de segurança e de posse de propriedades. Quase certamente será possível a reunificação, mas sob um sistema federal que englobe as duas comunidades cipriotas, com grande autonomia relativa. Será, no entanto, uma boa solução.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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