Cansados ou determinados, os portugueses na Venezuela resistem

Vários portugueses na Venezuela disseram que contam com a ajuda da família para ter acesso a medicamentos. É a possibilidade de adoecerem e necessitarem de tratamento hospitalar, ou de uma cirurgia, ou ainda a incerteza de verem cumpridos os pagamentos das suas pensões que mais os angustia

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Venezuela está no ponto da guerra civil: as pessoas estão armadas em casa e começam a organizar-se, lembra um dos portugueses em Caracas Reuters/CARLOS BARRIA
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Alejandra Gomes Silva admite que vive preocupada e que sonha "poder sair daqui". Se pudesse, era de olhos fechados, nem pensava duas vezes” Reuters/MARCO BELLO

Durante os dez ou quinze minutos em que Maria José Castro enfrentou sozinha um blindado da Guarda Nacional Bolivariana, impedindo-o de avançar sobre uma multidão de manifestantes, rebentaram à sua volta 35 bombas de gás lacrimogéneo. “Mas sabes o que me aconteceu? A primeira bomba fez-me chorar, mas depois as outras não, já não me afectaram”, recordou ao PÚBLICO a emigrante portuguesa de 54 anos de idade, nascida na Ponta do Pargo da ilha da Madeira e residente em Caracas há mais de 40 anos.

Captada pelas objectivas das agências internacionais e as câmaras dos telemóveis dos restantes manifestantes contra o regime do Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, a postura de Maria José, determinada, fixa, inabalável, frente ao chamado “rinoceronte” que galgava a auto-estrada Francisco Fajardo, no centro da capital, fez dela um símbolo de resistência pacífica à repressão do regime venezuelano. A “señora de la tanqueta”, como ficou conhecida, foi comparada ao “rebelde desconhecido” da Praça de Tiananmen, em Pequim. Hoje, como em 1989, o impacte da disseminação da sua imagem foi profundo — a percepção imediata da desigualdade e desproporção entre quem protesta e quem reprime.

A todo este frisson, que tanto lhe valeu um coro de aplausos e elogios (“valente”, “heróica”) como algumas críticas (“irresponsável”), Maria José reage com indiferença. Sobre o momento em causa, diz que agiu por instinto, com a única intenção de travar. “Quando olhei para a estrada, estava cheia de gente, rapazes, mas também muitos idosos. Deu-me uma pena tão grande, se eles avançassem os tanques por cima daquela gente toda ia ser um massacre”, lembra a portuguesa, que fechou os olhos e levantou os braços para fazer parar o blindado. “Não senti medo nenhum, tenho muita fé em Deus”, justifica.

Desde então, a sua vida não mudou em nada. “Estou em minha casa da mesma maneira.” Tal como nesse dia 19 de Abril, continua a sair para se juntar às marchas pacíficas que, dia sim, dia não, exigem a mudança política na Venezuela. “Estou aqui não por obrigação, mas por amor a este país. Tenho a responsabilidade, como todos os que este país recebeu, de permanecer ao lado das pessoas que estão aqui a viver este inferno.” No dia em que atendeu o telefonema do PÚBLICO, estava em casa a recuperar das mazelas da última marcha. “Lançaram-me a água do canhão para as pernas por três vezes, tenho o músculo contraído”. Mas garantiu que assim que recuperasse, voltaria à luta. “Aqui luta-se até ao final”, explica.

Enquanto o final não chega, a portuguesa preocupa-se com as pequenas — e as maiores — “moléstias” do quotidiano: a rede de metro que o Governo mandou encerrar, os apagões ou a falta de água, as filas nos supermercados. “Posso-lhe dizer: a uma das televisões que tinha em casa, a máquina da roupa, outros electrodomésticos, avariou tudo, os cortes eléctricos são a toda a hora, a água a cada dois meses falta. Medicamentos não há. Há comida, mas é cara. Quer dizer, neste momento é trabalhar para comer. E assim vamos.”

A insegurança não lhe mete medo, mas por causa da violência dos últimos meses uma das suas filhas (de 24 e 20 anos) não tem ido às aulas. O marido, madeirense da Raposeira e chefe de restaurante em Caracas, não conseguiu ir trabalhar na segunda-feira. “Em todo este tempo, nunca deixou em nenhum momento de ir para o trabalho. Mas trancaram-nos os caminhos, isolaram-nos aqui [no município de Baruta]. É uma violação dos direitos de todos os que moramos cá”, denuncia. “Este país não merece isto. O que vê o mundo é uma coisa, e aqui é outra.”

“Ponto de guerra civil”

Como Maria José Castro, também Rafael Tavares considera essencial manter a pressão sobre o regime e participar nas mobilizações anti-Maduro, mesmo se acredita que será já muito difícil obter uma solução pacífica para a crise do país. “Obviamente as pessoas têm medo. É verdade que há muita gente na rua, mas deveria haver mais. Muitos pensamos que os protestos deviam ser acompanhados por uma greve geral, que até agora não aconteceu. Talvez falte ainda um pouco de coragem para tomar essa iniciativa, mas com a situação a piorar, e com as pessoas sem poder comer, perde-se o medo, já não há nada a perder”, observa. “Quase 90% da população está cansada, e a perspectiva é sempre pior. Estamos no ponto da guerra civil: as pessoas estão armadas em casa e começam a organizar-se”, acrescenta, alertando para o risco de maior radicalização.

José Rafael faz um preâmbulo antes de relatar a sua vida quotidiana, na ilha de Margarita, a Nordeste de Caracas. “Talvez vá ser difícil acreditar naquilo que eu vou contar, é preciso estar aqui para perceber o difícil da situação”, avisa o investigador científico de 49 anos, cujo salário actual é equivalente a 40 dólares no câmbio do mercado negro — “o outro não há”, diz. Solteiro, reconhece que o seu dia-a-dia “não é tão difícil quanto o de alguém que precise de cuidar de uma família”, mas ainda assim relata “a procura constante por alimentos”

Rafael e a sua irmã Andrea têm pais portugueses, oriundos de Setúbal — um terceiro irmão “fartou-se disto tudo” e regressou com a mãe a Portugal.

Os dois Tavares que ficaram, muito activos nos protestos e com grande actividade política, não pensam para já nessa alternativa, embora não a descartem totalmente. “Tenho uma filha de 16 anos que gostaria de poder ir a festas, ir à praia, andar nos transportes públicos sem ser assaltada”, explica Andrea Tavares, que aos 45 anos é a coordenadora nacional do movimento político Alternativa 1 e dirigente do Fórum Câmbio Democrático. “Para uma família, começar do zero é sempre complicado. E para mim particularmente, que sempre estive ligada à luta social, sinto um compromisso com a Venezuela, e estarei cá para ajudar o país a sair desta crise e restaurar a democracia”.

Foi durante a juventude, na época universitária, que Andrea começou a interessar-se pela participação cívica. “Aqui a distribuição das receitas do petróleo nunca foi igualitária, sempre houve um nível muito alto de pobreza e exclusão, e a minha motivação era de poder ajudar quem tinha menos”, conta ao PÚBLICO. O seu trabalho político começou no partido Causa R, pelo qual foi eleita vereadora em Caracas e candidata a alcaide; quando a organização se dividiu passou a militar no novo partido Pátria para Todos, de centro-esquerda, que apoiou o primeiro Governo de Hugo Chávez. “Mas logo começaram as contradições e as diferenças com ele”, prossegue, ao ponto de o partido ter sido ilegalizado. O seu novo movimento político está na oposição ao Governo de Nicolás Maduro, mas não integra a coligação Mesa da Unidade Democrática por não se identificar com a lógica vigente de grandes blocos de poder. “Tentamos lutar pela despolarização, esse foi um processo que denegriu muito a política e afastou muito as pessoas”, explica.

Emagrecer 30 quilos

Em Maracay, no centro do país, Alejandra Gomes Silva participou recentemente numa manifestação de mulheres vestidas de branco, mas voltou para casa assim que apareceram os tanques da Guarda Bolivariana e começaram a voar bombas de gás. “Eu tenho medo, há muita repressão”, diz ao PÚBLICO. E além de instabilidade política, há também a insegurança. “Vivo preocupada e sonho com poder sair daqui. Se pudesse, era de olhos fechados, nem pensava duas vezes”, confessa a luso-venezuelana de 47 anos, cujos pais emigraram do Porto e de Grijó, e cujos filhos, de 20 e 18 anos, querem ambos deixar o país. “Mas não podemos, por causa do dinheiro, a passagem na TAP é muito cara”, lamenta.

A vida da sua família, confortavelmente de classe média, alterou-se radicalmente nos últimos anos. O marido, engenheiro electrotécnico, emagreceu 30 quilos. “No supermercado falta quase tudo, e o que há é racionado. Para comprar três quilos de arroz, espera-se três horas na fila. Carne não se pode comprar”, diz. “Há três anos que não sei o que é comer fora, não vou ao cinema, não compro roupa. Sair com o carro é difícil, é sempre a olhar para o lado. E o telemóvel fica sempre em casa”, acrescenta.

“Estamos cansados, psicologicamente, espiritualmente”, desabafa Alejandra, para quem a gota de água é a falta de medicamentos e cuidados médicos. “Hospitais, seguros sociais, não há nada. Há dois meses precisei de um antialérgico, corri todas as farmácias e em nenhuma havia. Há duas semanas um sobrinho de três anos foi internado no hospital de Valência, nem algodão tinham”, contou. “Aqui, Deus nos ajude a não cair na cama”, conclui.

Do outro lado do oceano, Christian Höhn, um venezuelano descendente de alemães que está radicado em Portugal desde 1989, faz os possíveis para responder a essa procura, aliviando as necessidades de clínicas e hospitais ou instituições sociais. A sua organização de apoio aos venezuelanos em Portugal, Venexos, dedica-se à recolha e envio de medicamentos, aproveitando o canal humanitário estabelecido para a Caritas, a Cruz Vermelha ou a Amnistia Internacional — ao longo de 2016, Höhn, que há 14 anos faz voluntariado para apoiar países em crise, conseguiu fazer chegar 87 toneladas de medicamentos à Venezuela. “Nunca imaginei que um dia tivesse que fazer um programa destes para o meu país”, desabafa.

Vários portugueses contactados pelo PÚBLICO na Venezuela disseram que contam com a ajuda da família para ter acesso a medicamentos. É a possibilidade de adoecerem e necessitarem de tratamento hospitalar, ou de uma cirurgia, ou ainda a incerteza de verem cumpridos os pagamentos das suas pensões que mais os angustia — perante o caos, sentem-se indefesos e desprotegidos.

O canal diplomático poucas vezes funciona, criticam: o plano de contingência anunciado pelo Governo português, que está disponível para repatriar os cidadãos nacionais se a crise se agudizar, permanece para eles uma incógnita. “Ouvimos falar disso, oxalá avance”, diz Alejandra. “Perguntamos ao consulado, não nos deram nenhuma informação”, acrescenta Rafael.

“Nunca vivemos assim”

Segundo Andrea Tavares, “o maior problema para os portugueses é o tema da insegurança. Essa é a grande razão porque querem sair do país”. A comunidade portuguesa na Venezuela é composta por muitos pequenos comerciantes, que vêm o seu investimento em risco por causa da crise económica, mas também sob ameaça de expropriação do Estado e de extorsão e saque dos grupos paramilitares que actuam com impunidade. “É a chamada ‘vacuna’, que eles exigem em troca de protecção”, explica.

O PÚBLICO contactou a família de um comerciante de 73 anos, natural da Madeira e radicado na Venezuela há 54 anos, que viu a sua licorería saqueada e totalmente destruída no mês passado — a seu pedido, os nomes não serão divulgados. O caso aconteceu na paróquia de El Valle, em Caracas: durante uma noite de distúrbios na rua, um grupo armado destruiu a tiro as grades do estabelecimento e iniciou o saque. “Segundo os vizinhos, os delinquentes entraram e levaram o que queriam, e logo atrás deles entraram outros que por ali andavam e sacaram o que faltava”, contou a filha do dono do negócio. “Quando o meu pai chegou lá de manhã — porque à noite ninguém arrisca sair de casa — encontrou tudo destruído, tudo o que havia no interior foi roubado ou danificado. Ao fim de tantos anos de trabalho, ficámos sem nada.”

Não foi a primeira vez que o comércio da família foi assaltado. “Em 1989 também aconteceu, quando houve uma fome grave. Mas agora é pior”, distingue a nossa interlocutora, que vê na actual vaga de violência contra estabelecimentos comerciais não uma reacção à fome (“que já dura há dois ou três anos”), mas antes um “plano para dominar as pessoas pela violência”, impedindo-as de sair de casa.

“Isto é algo de insólito e lamentável, nunca vivemos assim. Há uns cinco anos a vida era difícil, mas aguentava-se; agora é insustentável. Saímos de casa para trabalhar, mas se nos dizem ‘hoje há farinha’, lá vamos nós para a fila para comprar farinha. Ao fim do dia, fechas-te em casa por causa da violência. Não se pode fazer planos, só se pensa no imediato. O dia de amanhã depende do que decide quem manda — quem pode viver assim?”, pergunta.

“A situação está quase de guerra civil”, concorda Maria José Castro. Mas ao contrário da filha do comerciante de Caracas, para quem “a situação não tem melhoria, pelo menos a curto prazo”, ou de Alejandra Gomes Silva, que “uns dias está pessimista, outras vezes tem muita esperança”, Maria José está convicta de que “isto está a terminar”. Quem, como ela, já viveu várias crises e tumultos na Venezuela, nota uma diferença na situação actual: “Eles agora estão encurralados e sabem que estão encurralados. Tudo isto que está a acontecer é prova do desespero [do Governo], que vendo-se assim já está a eliminar provas, a esconder as loucuras que fez ao país”, afirma. “Maduro acabou com a Venezuela de Chávez”, resume, “este regime sairá e a Venezuela segue com outro tipo de Governo”.

À distância, Christian Höhn tem dúvidas que o regime caia por si. Para ele, só existem três hipóteses de resolução da crise: “Ou aparece um líder político que consiga unificar as massas, o que actualmente não é viável; ou os militares tomam uma posição e descolam do Governo; ou há uma intervenção internacional”.

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