Cabo Verde: e o tráfico de droga criou as “bocas de fumo”

O consumidor é um doente ou um delinquente? É prioritário tratar ou reprimir? Esta é uma questão de saúde ou de justiça? A 1.ª Conferência Internacional sobre Políticas de Droga nos PALOP procurou reforçar a cooperação entre governos, a sociedade civil e organismos internacionais.

Foto
Cabo Verde confronta-se com a sua impotência para vencer o crime organizado Miguel Madeira

Tira Chapéu cresceu sem licença. Tijolos de cimento, acumulados como peças de Lego descoloridas e empoeiradas, construíram um bairro. As crianças correm pelas ruas, os cães insistem em chamar a atenção, os cadáveres dos automóveis denunciam uma oficina e a parede vermelha da Ferro Bedjo destoa nas noites de koladera. Na Cidade da Praia, capital de Cabo Verde, o Tira Chapéu não é o único bairro a que chamam “problemático”. O sol brilha e aquece da mesma forma bairros como o do Brasil, Eugénio Lemos, Chechénia ou Achadinha. O que é que todos eles têm em comum?

Nas “bocas de fumo”, como lhes chamam, compra-se cannabis – duas pequenas “almôndegas” de papel grosso e castanho com erva lá dentro – por cem escudos locais. Mas o problema não é a padjinha – palhinha em crioulo. Pelo mesmo preço, cerca de um euro e dez cêntimos, também se compra uma dose de crack. Ou, a partir de 500 escudos, um grama de cocaína. E em quase todos eles existem tags, a versão cabo-verdiana dos gangs, uma invenção de repatriados dos EUA, que aqui reproduzem estilos de vida e de delinquência que são um cliché em tantos países. As novas rotas internacionais do tráfico de droga aproveitaram o remanso cabo-verdiano como ponto de paragem no seu trajecto para a Europa e deixaram as suas consequências e algo mais. O problema é comum a toda a África Ocidental, refere Ulrika Richardson Golinski, coordenadora residente do sistema das Nações Unidas em Cabo Verde: “Não é só uma rota de tráfico; é também um destino final.”

Cabo Verde confronta-se com a sua impotência para vencer o crime organizado, de proporções desconhecidas, mas seguramente de dimensão global, e a sua incapacidade para patrulhar eficazmente as suas 200 milhas de zona económica exclusiva. Carlos Reis, director da Polícia Judiciária (PJ), observa que o tráfico de droga procurou e medrou no país devido ao crescimento económico dos últimos anos e à consequente melhoria das infra-estruturas. Cabo Verde terá passado, suspeita o magistrado, de uma zona de passagem a armazém. O ex-Presidente Pedro Pires, afirmou mesmo, no último mês, que existe “droga armazenada” no país e que ninguém sabe onde a mesma é guardada. Nesta luta contra as drogas – uma guerra infinita e sempre falhada –, o director da PJ prefere atingir o “elefante”, em vez da “formiga”, o que não quer dizer que a formiga seja deixada em paz.

A guerra contra o narcotráfico não é de agora e alguns dos “elefantes” de que fala o director da PJ foram julgados e presos. Zany Filomeno, mais conhecida como “baronesa”, foi condenada a oito anos de prisão por tráfico de droga, mas foi recentemente libertada, em troca da sua colaboração na identificação e condenação de outros traficantes. Zany cumpriu metade da pena e, “cansada de esperar, resolveu meter a boca no trombone e exercer pressão sobre a justiça”, como explica o Expresso das Ilhas, um semanário cabo-verdiano. A sua libertação foi inesperada. Um outro semanário, A Nação, deu conta das queixas-crime que o procurador-geral da República apresentara contra a “baronesa” por difamação e injúria, uma vez que esta alegava ter sido usada para deter suspeitos do processo Voo da Águia e de ter sido abandonada posteriormente. Mas ninguém sabe para onde foi Zany Filomeno. O “trombone” pode ser estridente. Um outro processo tem dominado as atenções em Cabo Verde. A Lancha Voadora implicou muitos nomes, a condenação de traficantes a penas de 22 anos, no caso do seu principal cabecilha, e o confisco de bens – um edifício na capital foi transformado no quartel-general do Estado-Maior do Exército. Este caso, a maior apreensão de sempre em Cabo Verde, foi objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, cuja decisão será conhecida este ano.

Um primeiro estudo sobre consumo de droga no arquipélago, elaborado pela Comissão de Coordenação de Combate à Droga, com a colaboração de especialistas das Nações Unidas na Praia, confirma o sucesso da padjinha (a planta da cannabis), a substância de maior consumo no arquipélago. Seguem-se a cocaína, o haxixe (a resina da cannabis), e a heroína, cujo consumo é francamente residual. Um segundo e último estudo sobre a prevalência do consumo demonstra que os homens começam a consumir cannabis mais cedo do que as mulheres” e que a idade média do primeiro consumo ocorre aos 18 anos. Mas nada é dito sobre o consumo de anfetaminas, que também é já produzido no país e sobre o qual existe pouca informação disponível. Curiosamente, quando os inquiridos foram convidados a pronunciar-se sobre as suas próprias representações acerca dos consumidores de drogas, mais de 58% representaram o utilizador de drogas enquanto doente.

As autoridades locais garantem que ninguém está preso no país por consumir droga; que a lei da droga de 1993 pune os consumidores com uma pena de prisão até aos três anos e com multa até aos 30 dias, mas que o Código Penal de 2004 impede penas de prisão inferiores a três anos… Na prática, orgulha-se o director da PJ, não é preciso descriminalizar o consumo, porque ninguém é preso. Fernanda Marques, secretária executiva da Comissão de Coordenação de Combate à Droga, chama a atenção para as idiossincrasias de Cabo Verde em matéria de droga. De acordo com a mesma, não faz sentido falar em programas de substituição, com recurso a substâncias como a metadona, à semelhança do que acontece em Portugal, porque o número de utilizadores de opiáceos não o justifica.

De resto, o tratamento do consumo de drogas em Cabo Verde passa por experiências com a do projecto El Shady (Deus Todo-Poderoso, em hebraico), que há 17 anos aplica um método de trabalho “espiritual”, como explica o seu mentor, Honório Fragata. El Shady tem o apoio do Ministério da Saúde e apoia-se no método Minnesota, semelhante ao seguido pelas comunidades de alcoólicos anónimos. Fragata resume o essencial em três passos: “Esperança, Luz e Reinserção.” O método Minnesota, conhecido com o programa dos 12 passos, foi criado para o tratamento do alcoolismo, mas foi depois alargado a todos os tipos de dependência. É o mesmo processo que é aplicado na Comunidade Terapêutica Granja S. Filipe, a única do arquipélago, apoiada pelo Estado e pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e do Vale do Tejo, na qual, segundo José Moreira, o seu director, também se aposta na formação profissional como forma de reinserção social.

O insucesso da luta contra as drogas
O consumidor é um doente ou um delinquente? É prioritário tratar ou reprimir? Esta é uma questão de saúde ou de justiça? Questões como estas conduziram a discussão, na Cidade da Praia, dos dois dias da 1.ª Conferência Internacional sobre Políticas de Droga nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), organizada pelo Governo de Cabo Verde e pela agência portuguesa APDES, sem fins lucrativos e criada para “promover o desenvolvimento integrado”. Na abertura da conferência, na última quarta-feira, o primeiro-ministro José Maria das Neves deixou claro que o desafio actual é impedir que qualquer “elemento dos PALOP seja um narcoestado”; que a criminalidade organizada, nomeadamente a associada ao tráfico de drogas, atenta “claramente contra o Estado de direito democrático”. Nesta conferência, pelo menos entre os oradores oriundos de países exteriores aos PALOP, não foi difícil encontrar consenso quanto ao falhanço da chamada “luta contra as drogas”.

Fernando Henrique Cardoso, por videoconferência, na sua qualidade de presidente da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, disse isso mesmo. Entre elogios à descriminalização adoptada por Portugal em 2001, Henrique Cardoso defendeu a continuidade do combate ao tráfico, mas também a necessidade de outro olhar sobre as implicações do consumo: a necessidade de tratamento, de não encarar o consumidor da mesma forma como se encara o traficante. José Queiroz, director-geral da APDES, lançou o mote para um debate, ainda incipiente nos PALOP: “Que tipo de políticas devemos seguir?”; “A guerra às drogas cria uma teia na qual somos capturados; tem sido um falhanço e um insucesso político”.

Pedro Pires, ex-Presidente de Cabo Verde e um dos oradores da conferência, reconhece que a “região se transformou numa placa giratória” de distribuição de cocaína e assume que os “consumidores são pessoas humanas que precisam de assistência”. Esta placa giratória faz com que, na África Ocidental, as drogas circulem em maior quantidade e a preços mais baixos, aumente a criminalidade associada e as prisões se encham de pequenos consumidores, com a agravante de não existirem programas de tratamento ou de redução de riscos, como observou Joanne Csete, especialista do Programa Global de Políticas de Drogas da Open Society Foundation.

A dois anos de uma assembleia geral das Nações Unidas, na qual o tema da droga será novamente discutido, Jorge Sampaio entende que estamos no momento certo de lançar novas políticas neste domínio e que os PALOP se podem posicionar na defesa de um outro paradigma, que não descure o controlo da procura e da oferta, mas que também se preocupe com os programas de redução de riscos, as implicações do consumo na saúde pública ou a separação entre consumidor e traficante. As convenções da ONU, geralmente subscritas por todos estes países, são um álibi para que os Estados se concentrem apenas nas políticas de combate ao tráfico, descurando outras abordagens, como ficou patente na conferência. Em Portugal, por exemplo, o consumidor de drogas passou de criminoso a doente, a abordagem do problema descartou o moral. A alteração gerou receios de que o país se tornasse um “paraíso de drogados”, mas a nova lei acabou a ser elogiada. Foi por causa do chamado “modelo português” que João Goulão, director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, obteve o prémio Norman E. Zinberg for Achievement in the Field of Medicine de 2013, entregue em Denver, em reconhecimento pela “política portuguesa na área das drogas”.

Já existe um acordo assinado pelos países da CPLP (Comunidade de Países de língua Portuguesa) em Brasília, em 1997, com o objectivo de reforçar a cooperação na redução da oferta de droga. Mas a verdade é que esse acordo aguarda ratificação por alguns dos Estados e ninguém parece muito empenhado em recuperá-lo. O adiamento talvez diga mais sobre a habitual procrastinação de cada um do que sobre a ausência de vontade de cooperação. Uma primeira conferência como esta permitiu, pela primeira vez, a troca de experiências e de opiniões com uma profundidade até aqui inexistente. E talvez o empenho político na resolução destas questões, um desafio do infatigável Jorge Sampaio, possa influenciar futuras opções políticas no campo das drogas.

Isto porque, na Praia, foram os juízes de língua portuguesa presentes na conferência que chegaram a um entendimento bem mais sério do que o dos políticos presentes. O seu memorando, lido no final, propõe um grupo de trabalho para troca de experiências ou o estudo das boas práticas e da jurisprudência que possam ser passíveis de uniformização entre os respectivos países. David Soares, um descendente de cabo-verdianos da recôndita ilha da Brava, e actual procurador do distrito de Albany, Nova Iorque, sublinhou que os Estados Unidos gastam 40 mil milhões de dólares anuais com as suas prisões e que existem alternativas ao encarceramento dos consumidores. “Os consumidores são viciados em drogas, mas os polícias e magistrados são viciados em processos.” Como quem diz: “Tough on crime, smart on prevention.”

O Público viajou a convite da agência APDES

Sugerir correcção
Comentar