Bratislava não fechará as comportas abertas pelo "Brexit"

Merkel está deprimida e tem razões para isso. A Europa está mais dividida do que nunca. A divisão Norte-Sul parece uma brincadeira de crianças comparada com a divisão Leste-Oeste. Não se esperam milagres em Bratislava

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1.Citada pelo New York Times, a chanceler alemã dizia na semana passada que “o mundo se encontra numa situação crítica”. Acrescentando que “não serve de nada tentar pintar a situação de cor-de-rosa”. Nas últimas semanas, a chanceler teve a oportunidade de constatar que a Europa também se encontra numa situação bastante crítica, depois de ter tido encontros com praticamente todos os seus homólogos europeus, para avaliar o que se poderia fazer em Bratislava. Fontes do seu governo dizem que a chanceler veio “deprimida” sobretudo da sua visita a Varsóvia para falar com os países de Visegrado (Polónia, Hungria, Eslováquia e Republica Checa). Estará hoje na primeira cimeira a 27 com muita prudência quanto aos resultados. Com uma particularidade. Chega a Bratislava numa posição de fraqueza relativa que é totalmente nova para ela: com uma  escassa margem de manobra interna, por causa dos refugiados, e com uma menor margem de manobra externa, tentando refazer as suas alianças num xadrez muito mais desfavorável, depois do "Brexit". A cimeira foi convocada precisamente para tentar responder à pergunta: depois do "Brexit" o quê? Ainda faltam as respostas. De resto, já está estabelecido um calendário para continuar a discussão, que passa por uma cimeira informal como a de hoje em Fevereiro, em Malta, e que deve ser concluída em Março, no Conselho Europeu que celebrará em Roma os 60 anos do Tratado que fundou a Comunidade Económica Europeia. A partir daí, a Europa ficará à espera dos resultados das eleições em França e na Alemanha.

Para além da divisão Norte-Sul, a chanceler descobriu uma outra linha de fractura muito mais profunda e preocupante: a fractura Leste-Oeste, que não assenta na economia mas na emergência da mais grave das doenças europeias, o nacionalismo. Merkel passou anos a tentar melhorar as relações do seu país com a Polónia e com os seus vizinhos de Leste. Escolheu o anterior primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, para presidir ao Conselho Europeu, num gesto de boa vontade. Hoje, tem pela frente em Varsóvia um governo ultraconservador e nacionalista que voltou a tirar da gaveta os velhos fantasmas contra a Alemanha, e que não esconde o seu desprezo pela integração europeia, na sua forma actual.  Victor Órban, o primeiro-ministro húngaro, não lhe fica atrás. O ponto de fricção mais quente são os refugiados, cuja presença nos seus países rejeitam liminarmente, acusando Merkel de os receber sem consultar ninguém. São más notícias para Berlim. A estabilidade na sua fronteira Leste é fundamental. Como escrevia Timothy Garton Ash há já algum tempo, uma Alemanha de novo unificada precisava de estar rodeada de “Ocidente” por todos os lados, para não regressar à sua condição de país alinhado a Leste. Em comum, os países de Visegrado alimentam uma raiva profunda aos refugiados. É preciso lembrar que as sociedades do Leste europeu que estiveram sob domínio soviético durante quarenta anos eram totalmente fechadas ao exterior, mantendo a sua homogeneidade étnica, a anos-luz das sociedades multiculturais da Europa ocidental. Não são todos iguais mas bastante parecidos. O anfitrião da cimeira, o primeiro-ministro eslovaco Robert Fico, avisou os seus amigos de Visegrado que quer que tudo corra bem, aconselhando-os a não extremar posições. Mas ele próprio prometeu aos eslovacos que nem um muçulmano ficaria no país. Milos Zamam, o Presidente checo (o Governo é mais moderado) consegue fazer de Nigel Farage um “tipo cordato”. O que diz da Europa e dos refugiados ultrapassa em muito qualquer discurso minimamente civilizado. Numa entrevista ao Guardian explicava a única razão pela qual os países de Leste não vão sair: “dinheiro, dinheiro, dinheiro”. Mas criar uma zona de instabilidade entre a Alemanha e a Rússia é um pesadelo para Berlim, numa altura em que tem de gerir as relações com Putin sem deixar que fiquem reféns dos radicalismos de Leste. Finalmente, apesar dos esforços de Jean-Claude Juncker para minimizar o "Brexit", o referendo britânico acabou por funcionar como uma espécie de catarse para os países de Leste que se sentem muito mais à vontade para criticar a Europa.

2. Não acabam aqui as preocupações da chanceler. Wolfgang Schauble resolveu contribuir para um bom clima em Bratislava, quando resolveu apelidar os líderes dos países do Sul de “pouco inteligentes” com uma sobranceria que é difícil de entender, precisamente no momento em que o Presidente francês decidiu apresentar-se como líder desses países.

E esse é o segundo problema de Merkel. François Hollande considera já não ter nada a perder para tentar ganhar mais um mandato (mesmo que altamente improvável). Decidiu afastar-se da Alemanha e da sua política de austeridade defendendo abertamente a necessidade de criar as condições para o relançamento da economia europeia. Percebeu que não é com reformas que ganha a batalha (as poucas que fez não são muito mais do que pequenas alterações, como a regulação do mercado de trabalho, tão propagandeada pelo seu (ex) ministro mais liberal, Emmanuel Macron). Não quer ouvir falar de refugiados. Opôs-se publicamente às negociações transatlânticas para uma zona de comércio livre (declarou o TTIP morto e enterrado). Definiu o único campo de cooperação que está disposto a partilhar com Berlim: segurança e defesa. O terrorismo transformou a segurança numa prioridade francesa (e europeia). Os dois países levam uma proposta conjunta para dar forma aquilo que Jean-Claude Juncker defendeu no seu discurso do Estado da União, na quarta-feira. O presidente da Comissão pôs as coisas tal como devem ser postas, de forma bastante pragmática. A Europa precisa de uma capacidade militar mínima que lhe permita reagir a crises graves na sua proximidade, de forma a ser mais respeitada na cena internacional. Isso obriga a dispor de mecanismos de coordenação em Bruxelas, a velha ideia de um Quartel-General à qual o Reino Unido sempre se opôs, considerando que só serviria para enfraquecer a NATO. O presidente da Comissão insistiu em que se trata apenas de uma capacidade complementar da Aliança, sem nada que tenha a ver com um exército europeu. O revisionismo russo é o melhor conselheiro em matéria de preservação da Aliança Atlântica. O problema é que, sendo a proposta razoável, pode, mesmo assim, revelar-se impossível, desacreditando ainda mais a Europa. A defesa é o último reduto da soberania. A moeda corrente da Europa é hoje a desconfiança. Sem a capacidade britânica não é certo que a Europa consiga afirmar-se militarmente de forma credível.

3. Para Merkel a questão mais urgente é a dos refugiados, mas um entendimento europeu será provavelmente impossível. A abertura corajosa da chanceler está a trazer enormes problemas à Alemanha. A derrota na Pomerânia é, em si própria, insignificante, mas tem um valor simbólico muito forte: pela primeira vez desde a II Guerra a CDU perde para um partido de extrema-direita. A sua momentânea fraqueza perante os eleitores está a ser aproveitada pelos seus parceiros de coligação, que se mantiveram calados em matéria de política europeia enquanto a chanceler registava o apoio da grande maioria dos alemães pela forma como estava a gerir a crise do euro, ou seja, castigando os infractores. O problema do SPD é que, quando a chanceler perde, não é ele que ganha, mas os extremos. Falta um ano para as eleições e, tal como Hollande, Sigmar Gabriel acha que não tem nada a perder. Para os países do Sul, a realidade económica continua a ser o problema mais premente. Aos olhos do Norte, a questão do euro já está praticamente resolvida: foi feito o enquadramento legal a que os países se têm de  submeter, se querem permanecer na união monetária. A realidade não é essa. A convergência económica não está a ser conseguida. Ora, em Roma, Lisboa, Atenas e Paris a questão do crescimento é fulcral.

O problema é que a relativa fraqueza de Merkel e a necessidade que tem, também ela, de conciliar a política europeia com o que querem os seus eleitores, pode criar um vazio de liderança na Europa que é o pior que pode acontecer numa crise tão grave como aquela que os europeus enfrentam. A chanceler tem consciência das profundas divisões europeias. As consequências do "Brexit" são muito maiores do que alguns querem fazer crer. Abriram as comportas. É preciso que alguém as feche rapidamente. Mas quem? Não será em Bratislava.

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