Brasil de A a Z

O Brasil vai hoje a votos. Percorremos os temas que ocuparam os candidatos ou que estão nas preocupações dos eleitores. Pela campanha passaram palavras como “corrupção” e “desemprego”, mas também se falou de “infiéis” e “nanicos”.

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Aborto
Não existem dados oficiais, mas estima-se que o número de abortos realizados no Brasil chegue a cerca de um milhão por ano. É um crime que acarreta pena de um a três anos de prisão, mas a proibição não impede milhares de mulheres de recorrer a parteiras clandestinas. 

A sombra esconde um grave problema de saúde pública, denunciada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que toma como válidos os números de uma Pesquisa Nacional de Aborto coordenada pela Universidade de Brasília em 2010, que concluiu que 20% das mulheres em idade fértil — uma em cada cinco brasileiras até aos 40 anos — já se tinham submetido a um aborto. Mais recentemente, a OMS lamentou números que apontam para uma morte a cada dois dias por complicações resultantes de um aborto ilegal.

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Nelson Garrido

Contudo, nenhum dos principais candidatos presidenciais — Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT); Marina Silva da coligação Unidos pelo Brasil e Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) — vê nesta realidade razões para alterar a lei. As excepções no debate são Luciana Genro e Eduardo Jorge, os candidatos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e dos Verdes, que não só não fogem da discussão, como são defensores da descriminalização e liberalização do aborto.

Fortemente condicionados pela bancada evangélica e pelo chamado voto religioso, que representa quase 80% do eleitorado, os concorrentes da frente preferem não mexer na legislação, que remonta à década de 1940 e contempla duas circunstâncias para a realização de abortos: que a gestação ponha em risco imediato a vida da mãe; ou que a gravidez resulte de um crime sexual.

Bolsa Família
O principal programa de assistência social do governo federal nasceu ainda no Governo de Fernando Henrique Cardoso, mas a sua expansão e desenvolvimento durante os mandatos de Lula da Silva fazem com que no imaginário brasileiro seja creditado ao trabalho do Partido dos Trabalhadores. Actualmente, são cerca de 14 milhões os agregados familiares integrados nesse programa de ajuda financeira directa a quem vive abaixo da linha de pobreza, classificados como pobres e extremamente pobres segundo os critérios usados pela ONU em função do rendimento individual (inferior a 77 reais, cerca de 24 euros, por mês ou a 154 por mês). O programa, que no ano passado distribuiu 25 mil milhões de reais (8 mil milhões de euros), auxilia 50 milhões de pessoas — cerca de um quarto da população do país. Mas ainda há cerca de 8 milhões de brasileiros que deveriam beneficiar do programa. A ONU credita o Bolsa Família pela redução da fome no Brasil para metade em 20 anos. Ainda assim, há 3,4 milhões de pessoas, ou 1,7% da população, que não tem o que comer.
Para muitos analistas, é graças ao Bolsa Família que o PT se sustenta eleitoralmente no Nordeste e Norte do país, as regiões mais pobres do Brasil. Há quem se refira ao programa — que visa garantir o direito à alimentação, o acesso à educação e saúde — como “o maior colégio eleitoral do Brasil”. Os beneficiários directos ou indirectos compõem 23% do eleitorado nacional e votam com fidelidade no PT: nesse grupo, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) registou uma maioria de 57% de intenção de voto na Presidente, Dilma Rousseff, num cenário de segunda volta contra Marina Silva, com 32%.

A candidata ambientalista tem sido forçada a jogar à defesa nas suas respostas sobre o Bolsa Família, e repetir o seu compromisso com a manutenção dos programas sociais. “Eu sei o que é passar fome. Quem viveu essa experiência jamais acabará com o Bolsa Família. Não é um compromisso, é uma vida”, frisou Marina no Ceará. Pelo seu lado, Aécio Neves critica a gestão que o Governo de Dilma tem feito do programa. “Ninguém sabe direito o que está acontecendo, nem consegue saber”, atacou, dizendo que a diferença entre o seu partido e o PT é que o movimento de Dilma “se contenta com a administração da pobreza” enquanto a sua política “é de superação da pobreza”.

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UESLEI MARCELINO/REUTERS

Corrupção 
Um estudo do Global Financial Integrity (GFI, organização sem fins lucrativos que defende a transparência financeira), concluiu que, anualmente, o Brasil perde cerca de 30 mil milhões de dólares em “dinheiro sujo”, isto é, ligado à evasão fiscal, à corrupção e criminalidade. Esse montante — uma estimativa “conservadora” e que deverá estar abaixo do valor real — é equivalente a 1,5% da produção económica nacional. “O Brasil tem um sério problema com fluxos financeiros ilícitos, e combatê-lo deveria ser uma prioridade para o Governo que sair das próximas eleições”, considerou Raymond Baker, presidente da GFI.
Nos índices da Transparência Internacional, que analisa a percepção da corrupção em 177 países, o Brasil aparece no 72.º lugar do ranking dos países mais corruptos. Segundo a organização, a opinião pública brasileira manifestou a sensação de uma prática de corrupção muito extensa, com políticos, magistrados, polícias e outros servidores públicos dispostos a receber subornos e falta de transparência do Governo, administração pública e empresas.
Desde o ano 2000 até agora, o país registou 54 casos de “grande corrupção”. Mas para além dos grandes números da macroeconomia, existe a realidade quotidiana: a que milhões de brasileiros experimentam no seu relacionamento com as instituições. 
O tema dominou o debate eleitoral. A censura da corrupção e exigência de transparência e justiça foram bandeiras das manifestações de rua do Verão de 2013, e todos os candidatos incluíram nas suas plataformas políticas várias propostas (ou mesmo pacotes) para combater o fenómeno, acabar com a impunidade e punir os agentes e beneficiários da corrupção.  

Desemprego
A taxa de desemprego no Brasil, em Agosto, caiu para o nível mais baixo dos últimos 12 anos, e segundo os dados da pesquisa mensal de emprego do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) encontra-se nos 5%, ou seja, quase no patamar do que os compêndios de economia designam como “pleno emprego”. Foi, talvez, a melhor notícia para as aspirações eleitorais da Presidente. Como postulam todos os gurus das campanhas eleitorais, na hora de votar, o eleitor reflecte sobre o seu bolso e se a sua vida melhorou ou piorou. 
Apesar dos desequilíbrios económicos e da enorme desigualdade que ainda existe no Brasil, uma significativa parcela da população goza de estabilidade e considera que a sua vida melhorou nos últimos anos. Há factores demográficos para a queda da taxa de desemprego, que também se explica, por exemplo, pelo número de famílias que já dispõem de recursos suficientes para pagar os estudos aos seus filhos (que assim não procuram emprego).
Para vários comentadores, a principal razão pela qual as críticas da oposição à gestão económica de Dilma Rousseff não têm funcionado é precisamente porque a maioria da população tem trabalho (e a curva salarial tem sido ascendente). Com salário no fim do mês, e dinheiro no bolso, a catástrofe financeira que vem sendo anunciada pelos adversários do Governo não soa tão iminente para milhões de eleitores.

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Campanha esta semana de Dilma Rousseff VANDERLEI ALMEIDA/AFP

Eduardo Campos 
Em Agosto, a trágica morte do candidato presidencial, líder do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ex-governador de Pernambuco, num desastre aéreo no arranque da disputa eleitoral, mudou dramaticamente o rumo da campanha, baralhando a contabilidade eleitoral e a estratégia das candidaturas adversárias. Sem outra alternativa, a sua coligação Unidos pelo Brasil acabou por catapultar Marina Silva: a ex-senadora do Acre e activista do meio ambiente, que só aceitara o convite de Campos depois de falhar a legalização do seu próprio movimento político, Rede Sustentabilidade, entrou com estrondo na contenda presidencial, subindo nas projecções de voto para a segunda posição e em condições de vencer Dilma na segunda volta. A campanha perdeu dinamismo desde então e, nas vésperas da votação, lutava para assegurar a passagem à ronda decisiva, marcada para 26 de Outubro. Se a coligação sobreviver, poderá contar com os votos anti-Dilma e dos conservadores. Se perder o segundo lugar para o PSDB, será interessante perceber a distribuição de votos da aliança montada pelos socialistas, que em 2010 se integraram na base aliada do PT.

Ficha limpa
Pela primeira vez desde a sua aprovação, em 2010, a Lei da Ficha Limpa — que impede as candidaturas de indivíduos que tenham violado a “lisura e ética” eleitoral ou tenham pendentes contra si condenações na esfera eleitoral, administrativa ou criminal — vai ser aplicada numa eleição geral brasileira. 
De acordo com um levantamento feito pelo jornal O Globo no início de Setembro, a justiça eleitoral barrou 240 concorrentes e pediu a impugnação de 501 políticos “ficha suja” — desses, 50 renunciaram voluntariamente à candidatura depois da notificação do Ministério Público, mas em 15 estados, “pelo menos 90% dos barrados continuaram em campanha, o que é permitido até que haja decisão final” sobre os recursos apresentados junto do Supremo Tribunal Eleitoral.
Segundo a organização brasileira Congresso em Foco, quase 200 deputados federais em funções já têm uma condenação no cadastro, por crimes que vão de homicídio a escravatura, corrupção, lavagem de dinheiro e peculato.
A lei da ficha limpa resultou de um amplo movimento popular de credibilização do sistema político e “aprimoramento” do perfil dos concorrentes a cargos electivos – uma petição nacional nesse sentido reuniu mais de 1,3 milhões de assinaturas. A lei tipifica 14 condições de ineligibilidade e estabelece um período de oito anos de afastamento das urnas dos políticos que se enquadrem nesses critérios.
O Conselho Nacional de Justiça mantém um cadastro de políticos inelegíveis, com cerca de 14 mil nomes. O Globo encontrou pelo menos 54 candidatos cujos nomes constam nessa lista e há alguns mais mediáticos: o deputado Paulo Maluf, do Partido Progressista, que busca um novo mandato na câmara e que foi condenado por “improbidade administrativa” quando era prefeito de São Paulo; outros acabaram por repassar a candidatura a familiares, como foi o caso do ex-governador José Roberto Arruda, do Partido da República, condenado no âmbito do processo do “mensalão”, e impedido de concorrer pela vaga do governo do Distrito Federal de Brasília — a sua mulher, Flávia Peres Arruda, é agora a concorrente. Conhecida como “Flavinha Furacão”, a candidata de 34 anos, formada em Educação Física, foi apresentadora do boletim meteorológico na televisão até se casar com o governador e tornar-se “socialite em Brasília”, como descreve a imprensa.

Governabilidade 
O modelo institucional adoptado no Brasil pós-democratização, de um sistema presidencialista assente em coligações, vive tempos de crise e contestação. As opiniões dividem-se entre os que o responsabilizam pelo enquistamento do sistema político e o caciquismo, e os que sustentam que o actual desequilíbrio e mau funcionamento não equivale a um defeito intrínseco do modelo, apenas da sua aplicação.
Em Maio, o antigo presidente Fernando Henrique Cardoso escrevia que o sistema político brasileiro, “notadamente suas práticas eleitorais e partidárias”, tem vindo a ser posto em causa por “escândalos que jorram em abundância”. “Nenhum Governo pode funcionar na normalidade quando atado a um sistema político que permitiu a criação de mais de 30 partidos, dos quais 20 e poucos com assento no Congresso. A criação pelo Governo actual de 39 ministérios para atender as demandas dos partidos é prova disso e, ao mesmo tempo, é garantia de insucesso administrativo e da conivência com práticas de corrupção”, criticou, num texto para o diário espanhol El País. Para F.H.C., a formação de maiorias, cada vez mais alargadas, alterou o modelo para o que chama “presidencialismo de cooptação”, que transformou o Congresso numa manta de retalhos que, em vez de promover a diversidade e a negociação política, assenta num “comando centralizado” de um partido hegemónico.
Vários académicos defendem, no entanto, o presidencialismo multipartidário brasileiro. O professor da Fundação Getúlio Vargas, Carlos Pereira, diz que o modelo institucional montado após a ditadura “deu certo”, ao estabelecer várias estruturas de controlo do poder e introduzir previsibilidade e respeito pelo processo eleitoral. “Os perdedores submetem-se aos resultados e não há virada de mesa”, notou, numa entrevista ao Estadão. A independência da justiça e os instrumentos legislativos vigentes para “constranger” o Presidente são, para este especialista, adequados e suficientes. O coro recente de críticas resulta mais do facto de “Dilma ser uma má gerente da sua coligação” do que da arquitectura do sistema, remata.

Horário político
É através da campanha eleitoral obrigatória nos emissores de rádio e televisão que os candidatos se apresentam e os eleitores avaliam as suas propostas. É nesses espaços que se consomem os principais recursos das campanhas, e nem as candidaturas nem os comentadores políticos menosprezam a sua importância, mesmo se quase 35% dos brasileiros confessem não seguir os programas eleitorais dos candidatos na rádio e televisão (só 15% da população segue o horário eleitoral diariamente, revelou uma sondagem do Instituto MDA, divulgada na semana passada). 
Dilma Rousseff e o seu Partido dos Trabalhadores dominam o horário político, com mais tempo de antena do que todos os restantes candidatos. Segundo a lei, os concorrentes à presidência e as suas “legendas” dividem entre si os 30 minutos da emissão de acordo com o tamanho do partido e da bancada que representa no Congresso. Quanto maior e mais representativa a aliança ou coligação, maior o tempo de exibição. Na segunda volta, os concorrentes têm o mesmo tempo.
Os comentadores mostraram alguma surpresa com o tom belicoso dos programas no horário eleitoral e ainda pela “ignorância” dos temas centrais para a vida da população — os transportes públicos, a segurança ou a educação. Mais preocupados em atacar os adversários, os candidatos têm evitado comprometer-se com detalhes governativos, o que reforça a ideia da “desconexão” da realidade. Alguns especialistas notam, porém, que as campanhas estão a aproximar-se da lógica mediática, que privilegia a polémica, a controvérsia, o confronto.
Entre a audiência do tempo de antena, a Presidente Dilma Rousseff é a mais bem avaliada: 36% dos eleitores consideraram-na a melhor candidata, contra 23% em relação a Marina Silva e 21% de Aécio Neves. 

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Nelson Garrido

Indecisos (e infiéis)
“Os indecisos vão decidir a eleição”, informava um título de jornal, replicando idêntica certeza de comentadores, cientistas políticos e especialistas na interpretação de sondagens. A verdade auto-evidente expõe o grau de incerteza com o desfecho eleitoral: estas são as eleições mais renhidas e imprevisíveis desde 1989, repete a imprensa brasileira. Desde então, em 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010, foi possível estimar, com um elevado grau de segurança, quem seriam os concorrentes da segunda volta e, entre eles, quem sairia vencedor.
Como escrevia O Globo, na recta final da campanha, os estrategas trabalharam com um número em mente: 28 milhões, o índice histórico de eleitores que a uma semana da votação ainda não estão definitivamente comprometidos com um candidato. Mas os especialistas estimam que os verdadeiros indecisos representem apenas entre 6 e 8% do eleitorado. Não parece ser um contingente significativo, mas tendo em conta que as sondagens da segunda volta apontam para uma situação de empate técnico, cada voto conta, e o esforço das campanhas é que a indecisão não se repercuta num voto em branco.

Além dos indecisos, os analistas identificam um outro grupo importante para o assalto final das campanhas e que se baptizou “infiéis”. São eleitores que já revelaram uma preferência, mas ainda admitem mudar de ideias. As sondagens revelam que entre os apoiantes das principais candidaturas ainda existia um grande número de “infiéis”, um factor que aumenta a confiança dos estrategas do PSDB numa ultrapassagem de Aécio Neves a Marina Silva.
Na segunda volta, aumenta a parcela de “infiéis”, e as campanhas começam a apresentar argumentos para o voto útil. O índice de rejeição de cada candidato torna-se determinante. Mas há um importante dado histórico: nunca, no Brasil, o candidato que ficou em segundo conseguiu uma reviravolta. Tanto Collor de Melo (89), Lula da Silva (2002 e 2006) como Dilma Rousseff (2010) terminaram à frente na final.

Jovens
Os jovens entre os 16 e os 24 anos representam 16,1% do eleitorado brasileiro. Os mais novos, entre os 16 e 17 anos, são 1,6 milhões — um grupo que em 2010 continha 2,4 milhões de pessoas. Essa redução de 31,5% do contingente de eleitores é mais um sintoma da desconfiança dos políticos do que de uma apatia política: inquéritos de opinião revelam que 76% dos eleitores jovens manifestam “algum interesse” na actual campanha e 70% acreditam que através do voto podem transformar o Brasil — mas, ao mesmo tempo, 59% consideram que o país estaria melhor se não houvesse partidos políticos. Explicando ao Estadão por que não requereu o título de eleitora, Letícia Vieira, uma estudante de 17 anos, frisava que “os políticos são todos corruptos” e por isso “não vale a pena perder tempo em votar”. “O título de eleitor, se vale para alguma coisa, é só para trabalhar. Se nunca cumprem o que prometem, para quê votar?”, dizia.
Nos jornais e nas televisões, é palpável o descontentamento e a desilusão da juventude, que se mobilizou para os protestos de rua do Verão de 2013 e algumas manifestações durante o Mundial de futebol, mas não obteve grandes resultados com o seu activismo. Como resumia um estudante de 18 anos, de São Paulo, à BBC, “as pessoas estão perdendo as esperanças. Prometeram muitas coisas nos protestos mas nada aconteceu”.
O professor da Fundação Getúlio Vargas Ademar Bueno enquadra esse distanciamento juvenil do voto e da política tradicional. “Eles não se identificam com os políticos e não se sentem representados. E não enxergam nos partidos uma ideologia clara que possam seguir”, refere, numa análise para o Instituto Millenium.

Lula da Silva
O ex-metalúrgico, ex-sindicalista e ex-Presidente da República é a figura incontornável da política brasileira, e mais uma vez esta campanha demonstrou como o Partido dos Trabalhadores está dependente do seu fundador para entusiasmar a sua base de apoio. O popular ex-Presidente, que deixou Brasília com uma taxa de aprovação de 80%, esteve ausente no arranque da campanha. Dilma ressentiu-se e o PT tremeu. Mas quando Lula apareceu provocou estrondo: ninguém melhor do que ele é capaz de “comunicar” com o eleitorado brasileiro. A sua mensagem passou e a sua sucessora descolou nas sondagens.
A imprensa brasileira, particularmente aquela que milita contra Dilma e o PT (como a revista Veja), foi escrevendo que o crescente envolvimento de Lula na campanha tem um único objectivo: manter o caminho aberto para um regresso ao palácio do Planalto em 2018. Marina Silva, que como Dilma cresceu politicamente à sombra de Lula, chegou a desabafar em lágrimas que o efeito das palavras de Lula é devastador — e que apesar de não poder “controlar o que ele diz” sobre ela, nunca seria capaz de dizer mal dele.

Mudança
É o principal desejo dos brasileiros, manifesto em todas as sondagens. Uma impressionante maioria de 70% de cidadãos considera que o país precisa de uma mudança política, que tanto é entendida como “mudança de governantes” como “mudança da forma como se governa”. Porém, a um mês da votação, um número ainda mais avassalador de 92% de eleitores revelava não acreditar que os candidatos que forem eleitos sejam capazes de promover as “mudanças necessárias no Brasil” e ansiadas pela população (sondagem dos institutos Data Popular e Ideia Inteligência).
Para muitos eleitores, a mudança que pretendem é simplesmente um sinónimo de melhoria. A melhoria sobretudo dos serviços públicos que já conhecem, especialmente nas áreas da educação, saúde, transportes e segurança. Como escreveu o Estadão, “a insatisfação é geral: membros de diversas classes sociais reclamam dos mesmos serviços públicos fornecidos pelo Estado”. “Quando uma estabilidade ocorre, as pessoas tendem a deixar para trás reivindicações de subsistência e avançar, lutando por mais liberdade e capacidade de decisão sobre as suas vidas”, explica o cientista político José Álvaro Moisés, citado pelo diário. “As pessoas querem viver melhor, mas também querem os seus direitos individuais colocados em pauta pelos governos, sendo atendidos e respeitados”, completa Pedro Fassoni.

Nanicos

São uma constelação de pequenos partidos que, juntos, apenas representam 1% do eleitorado brasileiro. Em muitos casos, acabam por ter influência política, ainda que totalmente desproporcional à sua dimensão e desempenho eleitoral, por causa do sistema de costura de alianças e formação de coligações — muitas vezes, são eles que fazem o “trabalho sujo” aos grandes partidos, daí que sejam também classificados como “partidos de aluguel [aluguer]”. Noutros casos, ou comprovam a sua irrelevância política ou ganham notoriedade por causa das declarações desajustadas ou polémicas dos seus candidatos: aconteceu na semana passada com Levy Fidelix, que no debate presidencial da TV Record se referiu em termos bárbaros aos homossexuais, sugerindo que recebam “tratamento” e preconizando o seu “enfrentamento”. O líder do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), que concorre pela sétima vez à presidência, nunca conseguiu ser eleito para nenhum cargo público até hoje; em 2010, obteve 0,06% dos votos.
Além de Fidelix, outros quatro nanicos concorrem à presidência: José Maria Eymael, do Partido Social Democrata Cristão (PSDC); Mauro Iasi, do Partido Comunista Brasileiro (PCB); Rui Pimenta, do Partido Causa Operária (PCO), e José Maria, do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU).
Num ambiente de concorrência feroz pelos recursos, é a lei eleitoral que garante a sobrevivência dos nanicos, através de dotações do Fundo Partidário e do acesso ao horário eleitoral gratuito (e essa não é uma questão pacífica no país). 
As regras de distribuição do fundo determinam que 95% dos recursos sejam alocados em função dos votos obtidos na última eleição para a Câmara de Deputados, e os restantes 5%, em partes iguais, a todos os partidos registados, assegurando o financiamento mesmo daqueles que não recebam um único voto. Daí que exista quem defenda a revisão da lei eleitoral ou até uma emenda constitucional, para criar uma “cláusula de desempenho” para o acesso aos dinheiros públicos, ou até uma medida mais drástica, que seria a proibição das coligações.

Obrigatório
A obrigatoriedade do voto é uma das discussões recorrentes da política do Brasil, particularmente durante os períodos eleitorais. Todos os cidadãos alfabetizados do país, com mais de 18 anos e menos de 70, têm a obrigação de ir votar, ou então de justificar a sua ausência das urnas. A abstenção dá origem à aplicação de uma multa e a suspensão do título de eleitor impede o cidadão em causa de assumir cargos públicos, renovar matrícula em escolas públicas, tirar o passaporte ou obter empréstimos em bancos mantidos pelo Governo. 
Uma sondagem encomendada pela revista Exame com eleitores das cidades de São Paulo, Salvador, Goiânia, Belém e Porto Alegre revela que 78% discordam do voto obrigatório e apenas 8% “amam isso no país”. Além do Brasil, outros 21 países do mundo determinam a participação eleitoral obrigatória: muitos são da América Latina, mas há casos na Europa ou na Ásia. Mas as experiências são tão distintas que não é possível generalizar conclusões.
Especialistas consideram que a experiência democrática recente do Brasil ainda justifica que a medida se mantenha em vigor: essa é a forma de garantir que todos os cidadãos, mesmo os não politizados, exprimem a sua voz. É também, acrescentam, a forma de evitar o clientelismo, o elitismo e a polarização, uma vez que o alargamento da base eleitoral torna mais difícil que os extremos ou os grupos poderosos possam influenciar o desfecho da votação.
Outros entendem a obrigação de votar como um anacronismo, uma violação de direitos individuais fundamentais e até uma medida irresponsável do ponto de vista democrático, uma vez que pode gerar uma escolha sem critério. Se só os cidadãos interessados e informados forem às urnas, o voto é mais responsável e a qualidade da democracia melhora.

Petrobras
A companhia petrolífera estatal está debaixo da luz intensa dos holofotes da campanha, por causa de um escândalo de corrupção com contornos semelhantes ao esquema do Mensalão — o pagamento de “propinas” em troca de votos no Congresso e da assinatura de contratos com a empresa nacional. Actos de gestão recente, apesar de não configurarem a prática de crime, são potencialmente comprometedores para a Presidente Dilma Rousseff, que liderava o conselho de administração quando a empresa empreendeu um negócio ruinoso de compra de uma refinaria norte-americana.
Mas, na campanha, a Petrobras representa ainda a esperança que os brasileiros têm num futuro melhor, garantido pelos dividendos da exploração das reservas de petróleo encontradas na camada pré-sal. Em 2007, as descobertas destas reservas produziram uma euforia mundial e projectaram a companhia brasileira para o topo da primeira divisão das petrolíferas mundiais. Os casos polémicos, as decisões políticas controversas (por exemplo, os preços controlados) e o endividamento arrastaram o valor de mercado da empresa — levando jornais como o Financial Times a lamentar o “potencial não concretizado” da Petrobras.

Quotas raciais
O tema, que motivou campanhas na imprensa brasileira a favor e contra a instauração de um regime de “vagas” obrigatórias para negros e indígenas (ou “pardos”, que constituem 53% da população), em instituições públicas e privadas, esteve totalmente ausente da discussão eleitoral. Essa é uma conversa que remete para o racismo e a exclusão na sociedade brasileira, onde as minorias ainda se mantêm distantes dos lugares de poder e dos centros de decisão. Por exemplo, só 9% de todos os candidatos nas eleições deste domingo são negros. Nas universidades públicas de São Paulo, só 7% dos alunos são negros. 
Os três principais candidatos Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva incluíram propostas de medidas de “acção afirmativa” (quotas), inclusão social, combate ao racismo e igualdade racial. No entanto, na opinião do antropólogo Athayde Motta, que dirigiu o Fundo para a Equidade Racial, as soluções apresentadas para resolver o problema racial são por vezes demasiado genéricas. “Por exemplo, uma política de acção afirmativa que simplesmente abre vaga na universidade mas não garante a permanência [do estudante no sistema] tende com o tempo a não ser bem sucedida”, referiu à Agência Brasil.

Recessão 
Com dois trimestres consecutivos sem crescer, o Brasil entrou em recessão técnica, embora deva encerrar o ano de 2014 com um crescimento débil de 0,7% do Produto Interno Bruto (de acordo com a última revisão em baixa do Banco Central). Estagnação será, assim, uma melhor descrição da conjuntura económica, que ao baixo crescimento alia uma inflação “desconfortável” na casa dos 6% e impede mexidas na taxa de juro básica, actualmente nos 11% ao ano.
A última revisão do crescimento, de 1,6% para 0,7%, ficou a dever-se à queda do investimento, desaceleração do consumo das famílias, retracção na produção industrial e perda de dinamismo do sector agrário. É um retrato muito pouco abonatório — e o problema é que a forte desaceleração deste ano está a contaminar as expectativas de crescimento para 2015.
A opinião unânime entre os analistas é que o país esgotou o seu ciclo de crescimento baseado no consumo (e no crédito) e terá de enveredar por um novo caminho. Avisam que as contas públicas serão insustentáveis sem uma contenção forte da despesa do Estado e a revisão das políticas de controlo dos preços dos combustíveis ou da energia eléctrica.
A candidatura da Presidente tentou “armar-se” contra os ataques dos adversários por causa da situação da economia, tendo mesmo anunciado a substituição do seu ministro das Finanças em plena campanha. Os petistas sabem que a maior debilidade do seu mandato é a política económica “heterodoxa”, e, apesar de a conjuntura internacional ainda estar marcada pela turbulência, atribuir à crise financeira e recessão global de 2008, ou à queda do preço das commodities, as culpas pelo crescimento baixo ou a subida do défice externo não convence os analistas.

Saúde
Das três grandes reivindicações da sociedade brasileira nos protestos de Junho de 2013 — infra-estruturas e mobilidade, modernização do ensino e hospitais de qualidade —, aquela que mais ocupou os candidatos presidenciais foi a saúde. Dilma Rousseff nunca se esqueceu de mencionar o tema, confiante no sucesso das suas iniciativas, como por exemplo o programa Mais Médicos, um programa de incentivos federais para a contratação de médicos que assegurem os cuidados primários, que promete expandir em caso de reeleição. Se a eleição cair para Marina Silva ou Aécio Neves, o Mais Médicos vai sofrer alterações: o tucano quer padronizar a remuneração e impor uma validação para a contratação de médicos estrangeiros; a ecologista considera o programa “emergencial e inconsistente”.
A saúde foi a primeira arma de arremesso contra a candidatura de Marina Silva: o compromisso da ex-senadora de elevar para 10% da receita corrente bruta as transferências orçamentais para acções de saúde foi imediatamente contestado pelos seus adversários, que quiseram saber como a candidata pretendia pagar essa promessa (avaliada em cerca 40 mil milhões de reais, ou 13 mil milhões de euros).
Aécio Neves foi de todos os candidatos o que apresentou propostas mais vagas, comprometendo-se a reduzir as filas de espera para cirurgias ou a diminuir as taxas de mortalidade infantil e materna.

Transportes
Foi o aumento de 20 centavos nas tarifas do transporte público suburbano de São Paulo que serviu de acendalha para as grandes manifestações e protestos de rua que tomaram conta de algumas das maiores cidades brasileiras no Verão do ano passado. A questão dos transportes, que arrasta consigo o assunto “infra-estruturas” e à boleia o tema “a qualidade de vida nas cidades”, não deixou de ser abordada durante a campanha eleitoral, mas não tanto pelos candidatos à presidência — essas são matérias reservadas aos palanques estaduais.
Ainda assim, os candidatos prometeram: investimento em transportes públicos rápidos, seguros e eficientes para promover a mobilidade urbana (Dilma Rousseff); aplicar gradualmente a proposta do “passe livre” (Marina Silva); apoiar as ciclovias e estabelecer parcerias público-privadas ou concessionar as operações urbanas para melhorar a rede de transporte público (Aécio Neves).

Urna electrónica
Desde a década de 1990, a eleição no Brasil é feita num sistema de votação electrónica. O país é pioneiro no domínio da “informatização” eleitoral e este ano voltará a inovar, introduzindo a biometria (identificação por meio de impressão digital) em quase 800 municípios do país. A medida abrange quase 21 milhões de brasileiros, ou 15% do eleitorado, e impede que um eleitor possa fazer-se passar por outra pessoa ou votar duas vezes.
A urna electrónica é um microcomputador facilmente transportável, com autonomia de energia, e com um sistema de segurança antifraude. É a forma mais eficaz de assegurar a recolha e transmissão da informação eleitoral num país de dimensão continental. 

Violência
Nas escolas, nas esquadras e prisões, nas ruas, nos estádios, nas discotecas gay, dentro de casa… O Brasil é um país violento, mas como notava a BBC “o receio de perder votos de sectores conservadores impediu que o tema entrasse nos programas dos presidenciáveis”. Houve, no entender da emissora britânica, “uma fuga histórica do debate”, mesmo perante a pressão da opinião pública, que exige soluções de segurança pública.
As manchetes dos jornais não iludem a realidade violenta: arrastões a turistas; milícias populares e vigilantes que fazem linchamentos na rua; presos decapitados; professores agredidos; balas perdidas; mulheres mortas à pancada; líderes indígenas assassinados; mais de 200 homossexuais assassinados em 2014; trabalhadores escravizados em plantações; imigrantes roubados e agredidos; Black Bloks… Mas a questão da violência nunca é abordada de forma orgânica, e a campanha consome-se em debates laterais.
Perdeu-se a oportunidade para discutir soluções para a questão da violência policial, que já levou várias instâncias internacionais, nomeadamente a ONU, a pedir explicações ao Brasil. Como as polícias são subordinadas aos governadores, o uso excessivo da força ou a repressão e intimidação policial são problemas habitualmente delegados para o debate ao nível estadual e não aparecem muito na agenda dos candidatos à presidência. A desmilitarização da polícia brasileira, que é vista por muitos como um anacronismo histórico, resquício do tempo da ditadura, só é defendida por dois candidatos, Luciana Genro, do PSOL, e José Maria do PSTU.
De resto, as principais candidaturas defendem uma ampliação do papel do Governo federal em matérias de segurança pública. As suas propostas são bastante idênticas, e passam pela uniformização das políticas e pelo estabelecimento de um novo sistema de financiamento, com transferências de um fundo federal para os cofres estaduais e municipais.

Xapuri
É um dos seis municípios, no longínquo estado do Acre, que compõem a reserva extractivista baptizada com o nome do lendário Chico Mendes — o seringueiro e sindicalista do PT, filho da terra e mentor político e figura inspiradora da candidata Marina Silva. O seringal tem um papel simbólico na biografia e na carreira da candidata ambientalista; no entanto, de cada vez que foi a votos, Marina nunca conseguiu convencer os eleitores do seu estado natal a dar-lhe vitórias. “Não voto nela porque ela fez erro grande em se afastar da gente. Ela saiu do PT sem dar explicação para ninguém aqui. O partido aqui no Acre surgiu da luta dos seringueiros. Desde que me conheço por gente voto no PT. Não conheço bem os projectos da Marina, até porque a gente não tem televisão, mas sei que foi no governo petista que a minha vida melhorou muito”, resumia Maria Helena Ribeiro, de 43 anos, à reportagem do Estadão.

Zanga
As quezílias e desavenças, pessoais e partidárias, explicam em parte o elenco e o enredo da actual campanha presidencial brasileira. Por exemplo, o PSB de Eduardo Campos só decidiu afirmar-se como uma “terceira via” e avançar uma candidatura em nome próprio depois do rompimento oficial com o Governo de Dilma Rousseff. Os socialistas integraram a legenda do Partido dos Trabalhadores na votação de 2006 e 2010 e garantiram o apoio parlamentar aos executivos de Lula da Silva e de Dilma, nos quais asseguraram vários ministérios. Mas o distanciamento — leia-se, dissensão e aborrecimento — dos socialistas com a gestão de Dilma provocou a ruptura. Antes do PSB, já Marina Silva se tinha zangado com o PT. A ex-ministra do Meio Ambiente de Lula aceitou a aliança com Eduardo Campos por causa de outra zanga, com a justiça eleitoral que inviabilizou o registo do seu movimento Rede da Sustentabilidade.
No PSDB não houve exactamente uma zanga pública, mas uma guerra surda pelo controlo do partido entre Aécio Neves e José Serra. O político mineiro prevaleceu, mas as feridas do combate interno não sararam a tempo da campanha presidencial. 
De resto, a Presidente Dilma Rousseff é frequentemente caracterizada como uma mulher zangada. Mas mais zangada ainda está a sociedade brasileira com os seus representantes políticos

P.S. — Quem conhece não esquece: “Brasil é com s”, lembra Rita Lee.

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