Birmânia vota 20 anos depois para dar à junta militar um verniz civil

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As anteriores eleições legislativas aconteceram em 1990 Soe Zeya Tun/Reuters

Ninguém tem dúvidas de que os generais continuarão a dominar o país com mão-de-ferro. Mas alguns jovens estão a abrir novas portas para encontrar o seu caminho.

Uma artista quis fazer pássaros de papel de jornal porque diz que as vozes do povo não são ouvidas nos media do seu país. Uma banda de raparigas chamada "Tiger Girls" canta "Pára de falar e dança" e "Usa a anca e não a boca" para denunciar a falta de liberdade de expressão. Um rapper faz rimas como "vou pôr a Birmânia no mapa com uma miúda no meu colo".

Quem tem menos de 38 anos, nunca votou em eleições legislativas. Hoje poderá fazê-lo. E se a certeza antecipada dos resultados pode gerar alguma apatia, muitos jovens que têm tentado lutar por mais abertura encontram aqui, apesar de tudo, um momento para se falar de política.

As palavras são de um dos elementos da "Tiger Girls", Htike Htike, também conhecida como "Electro": "Ainda estamos à procura do nosso caminho... Alguns fãs não percebem a estrada que tomámos", disse à Reuters. Outros sabem que ela traz riscos.

Não é contestação aberta, pura e dura. Mas a mensagem está lá para quem estiver atento, mais ou menos escondida, já que é sempre preciso contar com o comité de censura. Por exemplo, a canção "Água, Electricidade, Por Favor Voltem", do artista de hip hop Thxa Soe, foi proibida por expor as falhas do país, onde um terço da população vive abaixo do limiar da pobreza.

A revista "Time" escrevia recentemente que há muitos jovens que aprenderam a respeitar a autoridade ao mesmo tempo que a subvertem. Que estão a encontrar novas formas para se exprimirem e, pelo caminho, de alterar a sociedade birmanesa.

Não é de mudança que se fala quando se fala das eleições de hoje. A junta militar - que se manteve no poder mesmo depois da vitória esmagadora da oposição liderada por Aung San Suu Kyi há 20 anos - não dá sinais de brechas.

O general Than Swe, de 77 anos, tem mantido o secretismo sobre o seu próprio futuro depois da eleição, que publicitou como uma transição democrática para um regime civil.

As eleições vão escolher os representantes das duas câmaras do parlamento e de 14 assembleias regionais. Os deputados elegerão dois vice-presidentes e o Presidente, posto que foi criado com a Constituição de 2008. E este escolherá ministros e o procurador-geral, sem que o Parlamento o possa refutar, a não ser que escapem aos "critérios de qualificação".

Os planos para o futuro do generalíssimo têm ficado em segredo, mas especula-se bastante que este "Governo civil" será liderado por ele.

"Não acho que ele vá partir", comentou à AFP Aung Zaw, director da revista "Irrawaddy", publicada na Tailândia por birmaneses no exílio. "Vai ficar no poder tanto quanto possível", e vai entregar as chaves do Exército "a alguém da sua confiança, bem mais fraco que ele".

A agência reforça que estas eleições, que foram descritas como uma farsa por vários países ocidentais, tentam imprimir um "verniz civil" à junta. Mas "o país dirige-se para a perpetuação de um regime de burocratas, economistas, ideólogos e políticos saídos do poder militar, ou fortemente influenciados e dependentes dele", afirma o investigador Renaud Egreteau.

O Exército nunca disse que pretende retirar-se da política. E um quarto dos assentos do Parlamento fica sob a sua escolha directa. O resto será ocupado por militares na reforma ou por partidos pró-junta, como o Partido da Solidariedade e do Desenvolvimento da União (PSDU, que diz ter 18 milhões de membros, quando há 28 registados para votar) e o Partido da Unidade Nacional (PUN). Ambos são formados principalmente por ex-membros do Exército e da elite económica.

Os grupos pró-democracia que não optaram pelo boicote (proibido pelo regime) queixaram-se de ter pouco espaço de manobra para fazer passar a mensagem, para além das intimidações que sofreram. A Liga Nacional para a Democracia, com a sua líder em prisão domiciliária e outros altos responsáveis detidos (há 2100 presos políticos), optou por não participar. A decisão desencadeou a dissolução do próprio partido, da qual saiu uma facção dissidente, a Força Democrática Nacional, que quer ir a votos.

"Onda Geração"

Com este cenário, não admira que muitos se interroguem de que vale ir às urnas. É o que faz Aye Aung Lin, de 24 anos, que desafia as autoridades com graffiti que ordenam: "Não votes", cita a AFP.

Aye Aung Lin (nome fictício) faz parte da chamada "Onda Geração" de jovens artistas - músicos, poetas, pintores - com posições mais subversivas. De tal forma que o grupo terá meia centena de membros e 20 estão na prisão. "Acreditamos que um dia vamos conseguir, mas temos de continuar a tentar", afirma. "Queremos chegar às pessoas através da arte."

Outros acreditam que, apesar de tudo, esta eleição abre algumas janelas "e poderá levar à democracia", como defende uma mulher da etnia kachin e que deu o nome de Ester. Ela e os amigos estão em viagem pelo país para convencer as pessoas a irem depositar o seu voto de forma consciente.

Para David Mathieson, da Human Rights Watch, as eleições podem levar a juventude a perceber que tem o dever de pressionar as autoridades para conseguir reformas democráticas, continua a agência. "É uma infelicidade que a sua primeira experiência de democracia seja tão amarga. Mas alguma coisa positiva poderá surgir se os miúdos virem como o processo funciona e como é adulterado."

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