Até tu, Bernie (ou a que distância está a paz Israel-Palestina)

A revolução tem limites, até para Bernie Sanders, quando se trata de Israel-Palestina.

1. Haverá, talvez (não quero exagerar), duas coisas pacíficas que se podem dizer sobre Israel-Palestina. A primeira é que a paz está longe, a segunda é que não acontecerá sem os EUA. Ou seja, olhar para os EUA dá uma ideia da distância a que estamos da paz Israel-Palestina. A partir daí, claro, depende do que cada um vê. O que me pareceu ver esta semana foi: nem com Bernie a coisa vai lá.

2. Para quem tem empatia com Hillary Clinton, o seu rival Bernie Sanders será no máximo entertaining, piri-piri na campanha, nada para levar muito a sério: um socialista que quer ser presidente dos Estados Unidos. Eu tenho zero empatia com Hillary Clinton, desde o apoio à invasão do Iraque aos serviços que prestou à Goldman Sachs; e o que Bernie Sanders já fez à política americana parece-me histórico, desde ter batido todos os recordes como independente no Congresso, aos bastiões que tem afrontado nesta campanha. Será o único candidato de quem se pode dizer: não vai ser presidente, mas já ganhou.

3. Depois de amanhã é o desfecho do duelo por Nova Iorque, a cidade que viu nascer Bernie e adoptou Hillary. O duelo ao vivo aconteceu quinta-feira em Brooklyn, com mais de cinco milhões de espectadores. Barbas brancas de senior, o moderador Wolf Blitz teve de interromper, avisando que se os rivais continuassem aos gritos ninguém ia ouvir nada. Nova Iorque era, à partida, o melhor palco para expor o que separa Hillary e Bernie. E, entre bastidores e palco, de facto expôs a que ponto vai essa diferença, e portanto a que ponto não vai.

4. Bernie Sanders cresceu num Brooklyn que não era rico nem trendy. Filho de emigrantes recentes, andou em escolas públicas, jogou na rua e no Bronx. O pai, judeu polaco, nascera ainda na Europa; a mãe era filha de judeus russos e polacos que tinham fugido para a América. Parte da família Sanders morreu no Holocausto. E a política na vida de Bernie vem daí, do facto de ser judeu, explicou numa entrevista. “Um tipo chamado Adolf Hitler ganhou uma eleição em 1932. Como resultado dessa eleição, 50 milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra Mundial, incluindo seis milhões de judeus. Então, eu soube desde criança que a política é, de facto, muito importante.” Cresceu sionista e socialista, e por isso se voluntariou para um kibbutz em Israel nos anos 1960, como tantos esquerdistas na altura. Ser judeu, para Sanders, não era uma questão religiosa. E, depois dessa breve incursão israelita, foi como socialista independente que travou tantos combates fora e dentro do Congresso americano: pelos direitos dos negros, das mulheres, dos emigrantes, dos refugiados; pela despenalização do aborto e a não discriminação LGBT; contra a brutalidade policial, as prisões privadas, a pena de morte, o aquecimento global, as grandes corporações, a forma como as campanhas políticas são financiadas. Só em 2015 se filiou no Partido Democrata, seu aliado de algumas batalhas. E, desde aí, a campanha de Bernie é o mais próximo de uma revolução para quem nasceu muito depois dele ter ido para um kibbutz, a geração que cresceu com a queda de Wall Street e o planeta a derreter. Bernie fez avançar a esquerda pelo mainstream americano com uma popularidade que ninguém conseguira antes, porque nunca antes, entre crashes bancários e globais, a falta de limites do capitalismo fora tão clara. Ele diz o que não se espera de um candidato dentro do sistema sobre os poderes estabelecidos, é Bernie, o Vermelho, correndo para presidente dos Estados Unidos da América em cartazes revolucionários. E não apenas ainda não foi arrumado por Hillary, como lhe tirou boa parte da vantagem. Portanto, este é o grande bulldozer, aquele que em nome do Partido Democrata disse não apenas uma coisa de esquerda, mas muitas coisas de esquerda, provando que muito mais gente do que se supunha as queria também dizer.

5. Chegou então o duelo de Nova Iorque, bastião dos lobbies pró-governo de Israel. Em vésperas do debate na TV, Bernie anuncia Simone Zimmerman, 25 anos, como coordenadora de campanha com o pelouro do eleitorado judeu. A notícia é celebrada pelos judeus americanos mais críticos do governo de Israel, sobretudo nos sectores que até aí achavam Bernie demasiado soft nas críticas. Enquanto isso, já os activistas pró-governo de Israel reviravam os pergaminhos da jovem judia. E num piscar de olhos alguém desancantou um post de Facebook em que ela, depois dos últimos bombardeamentos de Israel a Gaza, escreveu que Netanyahu era “arrogante, enganador e cínico”, um “manipulador”, que “sancionara a morte de mais de 2000 pessoas este Verão”. Nada que qualquer crítico europeu de Netanyahu (e, claro, Barack Obama off the record) não tenha dito. Pois Simone, anunciada numa terça, na quinta estava suspensa. Aconteceu horas antes do debate. A revolução tem limites, até para Bernie.

6. Depois, no debate, Israel-Palestina foi certamente um dos temas em que Bernie constrangeu Hillary mais duramente, criticando-a por ignorar o sofrimento palestiniano no seu discurso pró-Israel há um mês, perante o American Israel Public Affairs Committee (AIPAC, o mais poderoso lobby). Bernie não ficou por aqui: repetiu que a invasão israelita de 2014 em Gaza fora “desproporcionada” (em relação aos “rockets” do Hamas); disse que o “povo palestiniano tem de ser tratado com respeito e dignidade”, que os EUA “não podem continuar a ser parciais”, e a cortejar Netanyahu. Se os EUA estão empenhados em paz e justiça, “terão de reconhecer que Netanyahu não está certo o tempo todo”, disse. E ainda falou de desemprego e pobreza entre os palestinianos, criticou a construção de colonatos na Cisjordânia, condenou grupos como o AIPAC por terem tentado bloquear o acordo nuclear que Obama fez com o Irão.

7. As declarações foram celebradas pela imprensa menos conservadora como “fortes”, “históricas”, “sem precedentes”. Não só Bernie não fora encostado à parede por Hillary, num tema tão sensível para os nova-iorquinos, como ele é que a encostara. Shibley Telhami, ex-conselheira do enviado especial de Obama para o Médio Oriente, George Mitchell, disse que há um abismo entre a forma como os políticos do Partido Democrata falam do conflito israelo-palestiniano e aquilo em que as bases acreditam: ela acha que Bernie capitalizou esse gap. John Cassidy, repórter veterano da New Yorker, escreveu a seguir ao debate: “Vindas de um líder europeu, ou talvez de alguém como Jimmy Carter, as observações de Sanders não seriam inesperadas. Mas, no contexto em que foram ditas, constituem um espantoso afastamento da ortodoxia política.” Cassidy citou alguns tweets imediatos dando conta do espanto geral, como o de Nicholas Kristof no New York Times: “Bravo a Sanders por ter dito que o ataque de Israel a Gaza foi desproporcionado. Verdade, numa campanha! As surpresas não acabam!”

8. Essa é uma forma de ver a coisa, certamente uma forma americana, ou seja, tão optimista como longe do terreno, lá em Gaza. Outra forma é pensar que até essa celebração é um sinal do limite. Ou seja, os EUA estão tão longe da paz Israel-Palestina que o mais longe que o mais revolucionário candidato vai nesse item é o mainstream da decência; e isso, nos EUA, parece tão espantoso que é celebrado. Mas pelo menos Jason Horowitz escreveu no New York Times: “A suspensão [de Simone Zimmerman] mostra que, quando o que está em jogo é muito alto, e o escrutínio presidencial intenso, a visão do sistema sobre Ms. Zimmerman e os seus pares como radicais perigosos ainda encontra eco até em Mr. Sanders, um candidato que promete uma revolução.”

9. Por uma daquelas coincidências que não servem à ficção, passei hora e meia a trocar mensagens com Gaza antes de ler estes relatos na imprensa americana, então a minha leitura dificilmente seria a americana. Se o que Bernie fez e disse em Nova Iorque quanto a Israel é o mais longe que o mais radical pode ir, o mundo pode esperar sentado pela paz. E, aliás, espera, porque pode, são os palestinianos que estão presos sem uma vida há quatro gerações, não somos nós. O que a alinhada Hillary diz sobre este assunto faz-me pensar que, lá no fundo, ou nem tanto, ela simplesmente não acredita que israelitas e palestinianos tenham o mesmo direito à vida. E o que o simpático do desalinhado Bernie diz é o que na América parece muito, mas não chega.

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