As línguas na Europa: o que mudará com o “Brexit”?

O que faz falta à Europa é uma abordagem de política linguística que vá além da opção “por defeito” da simples submissão à hegemonia e ao domínio do inglês.

Há alguns meses que os media pesam as vantagens e os inconvenientes do “Brexit”, para os britânicos e para a União Europeia. Uma questão ficou, no entanto, claramente esquecida: o “Brexit” provoca alguma alteração nas questões linguísticas do projecto europeu? O inglês não fazia parte das línguas oficiais da comunidade fundadora com seis membros (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) mas tornou-se rapidamente numa língua dominante, ou mesmo hegemónica, das instituições europeias depois da entrada do Reino Unido em 1973. O “Brexit” alterará esta situação?

Não se negando as vantagens da existência de uma língua franca, o domínio do inglês levanta muitos problemas. Antes do “Brexit”, o inglês era a língua materna de cerca de 14% dos cidadãos europeus, sendo que, dos restantes, apenas 8% eram fluentes em inglês e 17% afirmavam ter um bom domínio desta língua. Isto significa que cerca de 75% dos europeus têm conhecimentos limitados, rudimentares ou não têm qualquer conhecimento da língua inglesa. Mesmo que estas competências tivessem expressão maior, existiria um verdadeiro problema de justiça. O domínio de uma língua, que é a língua materna de alguns no seio de um grupo, de um país ou de conjunto de países (e aprendida a custo quase nulo pelos seus falantes nativos), impõe um enorme custo de aprendizagem a todos os outros que se vêem obrigados a dedicar tempo, dinheiro e esforços consideráveis para a aprender. Ainda que haja grande empenho e muito esforço, os não nativos só em caso excepcionais atingirão o nível de competência próximo dos falantes nativos de inglês. Para aprender a utilizar esta língua com plena fluência, estima-se serem necessárias entre 12 000 e 15 000 horas de estudo e de prática, o que está claramente acima do que é expectável o europeu médio. Os nativos anglófonos e uma pequena minoria de não anglófonos que falam verdadeiramente inglês como língua segunda terão vantagens para qualquer emprego em que se exija proficiência nesta língua. Além disso, por os referenciais culturais, crescentemente dominantes, serem expressos nesta língua, os seus falantes nativos têm também vantagens de natureza cultural. Este desequilíbrio simbólico entre uma língua hegemónica e uma série de outras línguas, sempre marginalizadas, é, em si, perturbador (sobretudo, mas não exclusivamente, para quem não tem a língua inglesa como língua materna). Enfim, o domínio do inglês está, ano após ano, na base de desigualdades consideráveis no plano dos recursos, da comunicação e dos símbolos, entre os que não sabem inglês e os que têm esta língua como materna. E esta desigualdade entre pessoas também se verifica entre países: por um lado os países não anglófonos, por outro o Reino Unido (e marginalmente a Irlanda).

Pode isto mudar agora? Tendo o Reino Unido optado pela separação, o inglês é uma língua exterior à Europa, à excepção de cerca de 4,6 milhões de irlandeses e de menos de meio milhão de malteses – aproximadamente 1,6% da população da União pós-“Brexit”. O “privilégio” anglófono estará, a partir de agora, reservado a uma pequena minoria de europeus. Por um lado, diríamos que o privilégio se torna mais exorbitante mas, por outro, precisamente, porque os números envolvidos são mais baixos, o montante total das transferências efectuadas poderá ser insignificante. O inglês poderia, então, de forma mais credível, ser considerado como “neutro” e, portanto, uma ferramenta mais justa e apropriada para a condução dos negócios europeus, pois seria a língua materna de muito poucos cidadãos dos 27 membros (à excepção de perto de 5 milhões de irlandeses e malteses). Poderíamos, pois, concluir que o “Brexit” muda a situação linguística, o inglês se torna numa opção mais aceitável e as reservas que se pudessem ter sobre o seu domínio na Europa seriam consideradas infundadas. No entanto, uma análise mais cuidada mostra que o “Brexit” não torna a hegemonia do inglês menos problemática. Vejamos porquê.

Em primeiro lugar os cidadãos britânicos não vão desaparecer repentinamente dos serviços em que trabalham na União em Bruxelas. Ainda que, a termo, risquem de perder os empregos, os tradutores e os intérpretes continuariam a ser necessários se o inglês se mantivesse de facto a língua dominante da Europa. Por conseguinte, os falantes nativos manteriam, na prática, a vantagem de poder exercer na sua língua, e tendo todos os outros que a aprender e que se adaptar.

Em segundo lugar,  se o papel do inglês não for questionado, o Reino Unido (tal como os anglófonos de outros países) continuará a beneficiar de transferências sem compensação, uma vez que a utilização do inglês no seio da União Europeia (UE) exigirá sempre um investimento muito significativo para aprender esta língua. Tal confere aos falantes nativos, sem qualquer contrapartida, uma vantagem considerável em mercados lucrativos: professores e cursos de línguas, venda de material pedagógico, certificação, etc.

Em terceiro lugar – e sobretudo – o inglês domina em vários outros contextos para além das questões internas da União. Uma vez que a UE tem menos anglófonos nativos, o inglês deveria, no seio interior, ser menos injusto mas os desequilíbrios manter-se-iam fora da UE. A UE não é, nem será nunca, uma ilha distante do resto do mundo, ainda pós-Brexit apenas tenha 6% da população mundial. A globalização só acentua este contraste. Nos planos económico, político e científico, o que conta não é a UE mas o mundo. Mesmo na UE, áreas não relacionadas com o seu funcionamento institucional, como o turismo, a edição científica ou os negócios, manter-se-ão sob uma forte atracção do inglês. Assim sendo, em todo o mundo, os anglófonos continuarão a beneficiar das mesmas vantagens materiais, culturais e simbólicas.

Face ao exposto, ainda que o “Brexit” possa reduzir a injustiça linguística no âmbito das instituições europeias, em sentido estrito, não anulará as vantagens de que os países anglófonos beneficiam unilateralmente – se o uso dominante do inglês na UE não for posto em causa.

Para quem não se sente incomodado com as transferências materiais e simbólicas atrás referidas e para os defensores do uso do inglês como língua dominante na Europa, o “Brexit” não deve ser fonte de inquietude, pelo menos por questões de língua; a ordem linguística (se assim puder ser chamada) não será alterada. Para quem, pelo contrário, se preocupa com o reconhecimento desigual das línguas e com as transferências sem contrapartidas que a hegemonia de uma língua provoca, e quem defenda a multipolaridade no mundo, o “Brexit” também não será motivo de júbilo, pois a necessidade de defender activamente a diversidade linguística continuará a ser tão imperiosa como o era. Claro que o problema não é a língua inglesa ; o problema é uma hegemonia desprovida de justificação política. As inquietudes que se possam ter a este respeito seriam exactamente as mesmas se a língua dominante fosse o francês e houvesse um “Frexit”.

Os defensores do multilinguismo são, pois, favoráveis a uma dosagem de estratégias adaptadas a diferentes situações, combinando a protecção das línguas locais com a aprendizagem eficaz de línguas estrangeiras, o desenvolvimento de competências receptivas em línguas próximas, um uso optimizado da tradução e da interpretação, utilizações inovadoras das tecnologias da linguagem, e, enfim, um uso mais equilibrado não apenas de uma mas de várias lingue franche (entre as quais o inglês). Enfim, mais do que o ilusório impacto de um “Brexit”, nesta área o que faz falta à Europa é uma abordagem de política linguística que vá além da opção “por defeito” da simples submissão à hegemonia e ao domínio do inglês. Esta abordagem do multilinguismo só pode nascer de um debate aberto e democrático sobre o nosso futuro linguístico enquanto europeus.  

Manuel Célio Conceição, Universidade do Algarve

Astrid von Busekist, Instituto de Estudos Políticos de Paris

Helder De Schutter, Universidade Católica de Lovaina

Rob Dunbar, Universidade de Edimburgo

François Grin, Universidade de Genebra

Peter A. Kraus, Universidade de Augsburgo                          

Bengt-Arne Wickström, Universidade Andrássy, Budapeste

 

Os autores são coordenadores de equipas no consórcio europeu de investigação "Mobilidade e Inclusão na Europa numa Europa Multilingue" (MIME, www.mime-project.org). Os pontos de vista aqui apresentados são, no entanto, apenas seus.

 

 

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