As escolas de Houston e as Lajes “chinesas”

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1. Li com enorme perplexidade que um parecer encomendado por algumas editoras ao constitucionalista, que muito respeito, Gomes Canotilho sobre a fornecimento gratuito de livros escolares ao primeiro ciclo do ensino público, por via da reutilização, considera ser esta inconstitucional. Mas não diz a Constituição que o ensino público deve ser gratuito? E não sabemos nós que não há nada mais importante para garantir um limiar justo de igualdade de oportunidades do que a educação, e ainda mais no seu início?

A secretária de Estado deu uma entrevista ao PÚBLICO (11 de Outubro) com a fundamentação da medida e a sua filosofia. Quem não sabe, neste país, o que custa a cada família a factura em livros no início do ano lectivo? Há, naturalmente, a Acção Social Escolar que fornece livros aos mais carenciados. Mas também sabemos que o conceito de carenciado é muito relativo: só se aplica aos duplamente pobres e não aos apenas pobres e remediados.

Na Europa há muitos países em que gratuitidade está garantida, mesmo em países muito mais ricos em que a fractura dos livros não pesaria tanto. Por mim, posso dar o testemunho de como funciona uma escola pública em Houston, Texas, para onde costumamos olhar como se fosse uma espécie de Farwest, que manifestamente não é. Na escola pública elementar onde andam as minhas netas, as despesas iniciais resumem-se ao material escolar (um arquivador, lápis, borrachas, lápis de cor). Os livros são fornecidos pelo Estado, contêm fichas de trabalho para fazer na escola ou para levar para casa. A leitura semanal de um livro é abastecida pela biblioteca da escola e os livros têm de ser estimados. Se for a escola a fornecer o almoço, paga-se dois euros por refeição. Que o ensino é de qualidade repara-se imediatamente. A responsabilidade da comunidade para manter aquela escola a funcionar bem é muito maior do que cá, por razões que até se compreendem.

A escola conta com o voluntariado das famílias para garantir que tudo funciona o melhor possível. As doações solicitadas a essa mesma comunidade conseguem angariar o dinheiro necessário para melhorar isto ou aquilo. Sabemos que, nos EUA, esta prática é corrente. Houston é uma enorme cidade razoavelmente rica (petróleo, NASA e um dos melhores centros hospitalares do país). Escolhe-se primeiro a escola e depois a casa (claro que há aqui um coeficiente de injustiça). O sistema educativo americano é responsabilidade de cada estado. Há umas duas décadas, Houston percebeu que tinha de ter uma economia mais diferenciada e não apenas dependente de um único sector. Decidiu fazer uma aposta na educação a todos os níveis que resultou. Não são realidades comparáveis? Pois não. Mas pagar os livros escolares, impedindo a reutilização, não é a realidade que manifestamente nos convém.

2. António Costa foi à China numa visita centrada na cooperação económica e destinada a aproveitar a “parceria estratégica” que existe entre os dois países e que, na Europa, apenas existe com meia dúzia de outros países europeus (sobretudo os maiores). Até aqui nada de novo. O capital chinês (público, privado ou assim-assim) já está em grandes empresas portuguesas.

Depois da EDP ou da REN, está a entrar em força no sistema financeiro. A economia chinesa é uma espécie de “capitalismo selvagem”, dirigido por um partido único que controla quase tudo. Mas é também, entre as grandes economias, aquela que mais cresceu e ainda cresce. Não há líder europeu que não se apresente em Pequim com grandes delegações de empresários para assinar contratos milionários. Para um país que precisa desesperadamente de investimento estrangeiro, não convém ignorar a China. Até aqui tudo bem.

Quando essa parceria inclui a presença da China num novo modelo de aproveitamento das Lajes, de onde os americanos estão a sair e em que assenta o acordo bilateral entre os dois países em matéria de defesa, a mensagem torna-se mais complexa. O primeiro-ministro já esclareceu que se tratou apenas de convidar a China a participar num projecto científico internacional, tirando partido da localização e das infra-estruturas da base, da mesma maneira que seria bem-vinda a participação dos EUA, do Reino Unido ou da França.

Pode servir para atenuar o efeito das suas palavras. Mas não creio que os EUA fiquem indiferentes, apesar da reacção conciliadora do embaixador americano em Lisboa. Por várias razões.

A China tem uma estratégia europeia com princípio, meio e fim que está a aplicar com eficiência. Aproveitou a crise para investir nos países do Sul mais vulneráveis e mais necessitados de capital, somando-lhe uma atenção particular que já tinha nos países de leste. Acresce que ninguém sabe qual será o futuro da China e que a História nos ensina que, quase sempre, a emergência de uma nova potência que quer desafiar o poder das potências estabelecidas pode custar uma guerra. Na verdade, ninguém tem a certeza de nada, a não ser que uma implosão chinesa (por razões económicas ou sociais) é um cenário de pesadelo para o mundo inteiro.

3. Ora, os países europeus (grandes ou pequenos) habituaram-se a confiar nos Estados Unidos para garantir a segurança na Ásia-Pacífico, dando-lhes toda a tranquilidade para fazer os seus negócios.

É uma situação agradável e barata, mas que ninguém pode garantir que vai continuar eternamente. E, depois, há as decisões políticas e estratégicas. No final da era Bush, alguém se lembrou, por óbvia pressão chinesa, de colocar em cima da mesa do Conselho de Ministros da União o fim do embargo à venda de tecnologia à China que pudesse ser para fins militares. A medida foi tomada depois do massacre de Tiananmen. Houve vários governos (incluindo o nosso) que se mostraram favoráveis ao levantamento, mas prevaleceu o bom senso e, sobretudo, a pressão brutal da diplomacia americana. Enfim, com Obama ou com Bush, mesmo que sejam totalmente diferentes as suas perspectivas sobre o exercício do poder mundial, há coisas que permanecem.

Os governos europeus continuam a considerar que a política americana de cooperação/ contenção da China é demasiado dura. Um dia destes, como se viu nesta campanha eleitoral, os americanos podem cansar-se de garantir a segurança europeia ou do Japão ou da Coreia do Sul. Claro que há oportunidades e oportunidades. Portugal tem uma excelente porta aberta para atrair o investimento chinês em Sines, que ganhou uma nova dimensão geo-económica com o alargamento do Canal do Panamá para deixar passar os gigantescos contentores que chegam à Europa, graças à sua localização e às suas águas profundas. Dir-me-ão que tudo tem contrapartidas. Pois é. Desde que não ponham em causa os interesses estratégicos do país. 

Jornalista. Escreve ao domingo
teresa.de.sousa@publico.pt

 

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