Apocalipse na Síria: Alepo, ponto de viragem na guerra?

Milhares de pessoas em fuga estão a deslocar-se para a fronteira da Turquia, com esta encerrada. As imagens da destruição apocalíptica de Homs poderão repetir-se em Alepo.

1. Apocalipse (apokálypsis). Segundo a Bíblia foi escrito em Patmos, uma das ilhas gregas do Dodecaneso, no mar Egeu, próximas da Turquia. A tradição cristã atribui a sua autoria a São João Evangelista. Historicamente foi local de exílio, de refúgio de perseguidos. Hoje, pela sua localizaçãoo geográfica, é um dos locais de chegada dos refugiados da guerra da Síria. Apocalipse, termo de origem grega que significa revelação. O texto bíblico contém imagens simbólicas, grandiosas e aterradoras, em forma de visões, com tremendos confrontos entre o Bem e o Mal antes da vitória do reino de Deus. Numa interpretação literal foi comumente identificado com acontecimentos catastróficos que anunciariam o fim dos tempos. A cultura ocidental está impregnada desse impressivo episódio bíblico. A pintura de Bosch, de finais do século XV, retratando S. João a escrever o livro do Apocalipse em Patmos, ou o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, nos anos 1970, com a guerra do Vietname como cenário de fundo, estão entre as mais brilhantes realizações que inspirou. Marcou gerações e gerações. Na Bíblia, a batalha do fim dos tempos / Armagedão, situa-se na planície e colina de Meggido, actualmente em Israel. Podemos especular se João escrevesse hoje o Apocalipse não o situaria mais a Norte, na vizinha Síria. Se, em vez de Meggido, não seriam Homs (ver “A cidade síria de Homs parece um filme apocalítico” in Público 4/02/2016), ou Alepo, os locais do Apocalipse.

2. As operações militares e a violência intensificaram-se na Síria. As vagas de refugiados também — quarenta mil a setenta mil, consoante as fontes. Ironicamente, o tempo deveria ser de tréguas, de negociações políticas, de acordos de paz. Afinal, tinham-se iniciado conversações em Genebra, na Suíça, sob a égide das Nações Unidas. Infelizmente, aproximaram-se mais de uma farsa. Provavelmente ninguém acreditou nelas. Nem o governo de Bashar al-Assad, que pretende rotular a generalidade dos grupos da oposição como terroristas e melhorar a sua posição militar no terreno. Nem os representantes da oposição, que, na realidade, apenas o são de forma parcial e fragmentada. Trata-se de uma amálgama incoerente de grupos, os quais vão desde os que almejam uma Síria secular, democrática e pluralista (poucos), até aos que têm por objectivo instaurar, de alguma forma, um Estado islâmico (muitos). Actores importantes como os curdos foram excluídos. Enquanto a oposição reclamava medidas humanitárias, no terreno, as tropas de Assad, avançaram até aos arredores de Alepo, cortando a principal linha de abastecimento dos rebeldes. Na prática, isolaram a cidade do apoio humano e material vindo da Turquia, dada a sua proximidade da fronteira. Com o domínio russo do ar, os exércitos de Bashar al-Assad e seus aliados preparam um cerco total a Alepo, para uma posterior investida militar, ou forçar a rendição da cidade. A batalha de Alepo em curso pode ser um ponto de viragem da guerra na Síria, a favor de Assad, que poucos pensariam ser possível ainda não há muito tempo atrás. A enorme violência não se deve só ao autoritarismo opressor do seu regime, nem às lutas fratricidas contra os grupos que o combatem (e se combatem entre si). Os interesses das potências regionais envolvidas no conflito agudizam dramaticamente o conflito.

3. Turquia e Arábia Saudita, por um lado, e Rússia e Irão por outro, são potências incontornáveis na guerra e na paz — para já têm sido essencialmente na guerra. A situação é perigosa. Há um crescente envolvimento político e / ou militar e até de prestígio internacional que colocaram na guerra da Síria. A Turquia, tal como a Arábia Saudita, apostou numa guerra por procuração. Só assim se compreende a benevolência, mostrada durante muito tempo, para com grupos islamistas-jihadistas, como o Daesh e a Frente Al-Nusra, próxima da Al-Qaeda. Ambiciona que a futura Síria seja uma espécie de protectorado. Pretende resolver a questão do Hatay de iure, território anexado em 1938, nunca reconhecida pela Síria. A estratégia parecia resultar. A entrada da Rússia na guerra, no Verão de 2015, alterou os dados, frustrando os objectivos turcos. O incidente do abate do avião russo, ocorrido em Novembro de 2015, evidenciou os riscos da confrontação resvalar para um embate entre grandes potências (incluindo, naturalmente, os EUA e seus aliados da NATO). Exceptuadas as questões fronteiriças, a Arábia Saudita tem uma abordagem bastante similar à da Turquia. O zelo missionário religioso e os imensos recursos do petróleo convenceram os sauditas de serem o farol do Islão. Pretendem uma Síria sunita, sob a sua influência. Fornecem a ideologia e o dinheiro para combater Assad. Patrocinaram, em Dezembro de 2015, a reunião de grupos opositores sírios — incluindo islamitas radicais como o Jaysh al-Islam —, para monopolizarem a representação da oposição. Recentemente, o brigadeiro-general Ahmed Asseri, ligado às forças da Arábia Saudita no Iémen, disse ao canal Al Arabiya que o país estava disposto e enviar forças terrestres no âmbito de uma coligação internacional. Teoricamente, o objectivo seria combater o Daesh.

4. Também o Irão está fortemente envolvido na guerra da Síria. O apoio a Assad é político, financeiro e militar. Os factos que emergem do terreno não deixam grandes dividas. Um exemplo é caso do general Hossein Hamadani, alto comandante dos Guardas da Revolução iranianos. Foi morto na Síria, em Outubro de 2015, próximo de Alepo. Oficialmente, estava, apenas, numa missão de aconselhamento na região. O Hezbollah dos xiitas do Líbano tem similar envolvimento ao do Irão. Em Maio / Junho de 2013, numa altura crítica para Assad, o seu empenhamento na batalha de al-Qusayr, próxima da fronteira com o Líbano, foi decisivo para a vitória militar. Cerca de dois mil dos seus mais experientes combatentes atravessaram a fronteira, juntando-se às forças governamentais. A proximidade entre o Irão, o Hezbollah e o regime de Bashar al-Assad, é, simultaneamente, política e religiosa. No Médio Oriente, não há, tipicamente, linhas de separação entre essas duas esferas da vida humana. Os alauitas, o grupo religioso de Assad, são uma minoria: 12% ou 13% da população. A sua crença heterodoxa contém elementos da tradição islâmica similares ao do xiismo. A veneração de Ali é o mais óbvio. Uma heresia, para os sunitas. A teologia serve de ponte para a política. Até ao século XX, e à chegada dos franceses, que administraram o território entre as duas guerras mundiais, eram uma população pobre, discriminada e perseguida. Ironias da história, com Hafez al-Assad, a partir dos anos 1970, passaram a ser detentores do poder e vistos como opressores, pela maioria dos sunitas.

5. A Rússia tem sido crucial na manutenção de Assad no poder e na preservação de alguma legitimidade internacional do seu governo. A Síria é um tradicional aliado russo, desde os tempos da União Soviética. Primeiro, foi a intervenção política que se mostrou fundamental. A Rússia bloqueou várias resoluções no Conselho de Segurança da ONU. Foi decisiva no momento mais crítico, no Verão de 2013. Nessa altura, os países árabes sunitas e a Turquia, secundados pelos EUA e alguns países europeus, procuravam imputar essa responsabilidade ao governo de Assad, obtendo uma resolução do Conselho de Segurança, para intervir militarmente. A Rússia vetou. Conseguiu, até, uma reviravolta diplomática assinalável, chegando a acordo com os EUA para a eliminação das armas químicas. Dois anos depois, em finais de 2015, novo impulso, agora militar, através de bombardeamentos aéreos, teoricamente só contra o Daesh. (Na realidade atacando, também, outros grupos da oposição a Assad). Como já referido, a principal vítima desta nova assertividade russa — ou agressividade, consoante as perspectivas —, foram as ambições da Turquia. A tensão continua entre as duas potências. No seu episódio mais recente, o governo russo declarou, publicamente, ter sérias razões para acreditar que a Turquia prepara uma intervenção militar terrestre na Síria, existindo sinais de uma mobilização secreta das suas forças armadas. Não é claro se estamos apenas perante pressão política e desinformação russa, como sustenta a Turquia.

6. Com toda a envolvente e interesses que se jogam na Síria, a batalha de Alepo vai concentrar o máximo das energias destruidoras dos intervenientes. O prémio, para o vencedor, pode ser a viragem no rumo da guerra da Síria a seu favor. É bastante claro esse objectivo para Assad e os seus aliados. Se a cidade for conquistada passam a controlar, novamente, a grande maioria do território e as suas cidades mais importantes. Terá indubitável impacto político e em quaisquer negociações de paz. Mas isso é a última coisa que a Turquia, a Arábia Saudita e outros Estados sunitas querem também. Pelas altas apostas feitas no conflito da Síria, o risco de resvalar para uma confrontação mais generalizada aumenta. Seja qual for o resultado da operação militar em curso, a população civil síria, pelo menos no imediato, vai sofrer, ainda mais, os horrores da guerra. Num comunicado de imprensa do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 17/08/2015, estimava-se em mais de 250.000 o número de vítimas e em cerca de 12 milhões, os refugiados e deslocados. O número hoje é certamente superior, pela continuidade da guerra e da enorme tragédia humanitária que desencadeou. Milhares de pessoas em fuga estão a deslocar-se para a fronteira da Turquia, com esta encerrada. As imagens da destruição apocalíptica de Homs poderão repetir-se em Alepo.

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