Alepo e Mossul: as guerras dentro da guerra

Os riscos ligados às batalhas de Alepo e Mossul são grandes. Novas crises humanitárias graves podem surgir, desencadeando uma ainda maior vaga de refugiados para a Europa.

1. Todos contra o Daesh. Assim parece quando se vê o assalto militar e a vasta operação em curso para a reconquista de Mossul, no Norte do Iraque. Tropas do governo iraquiano, peshmerga curdos, milícias xiitas apoiadas pelo Irão, turcomanos (ou turcomenos) apoiados pela Turquia, militares dos EUA nas forças de suporte, e, sobretudo, na campanha aérea, todos integram uma grande coligação destinada a recapturar Mossul. Mas sob a superficialidade desta acção concertada escondem-se interesses políticos e estratégicos muito díspares e em potencial rota de colisão. O mundo poderá respirar de alívio se o Daesh for derrotado no seu último grande reduto territorial do Iraque? Provavelmente não. A guerra contra o Daesh esconde várias outras guerras dentro dela. Algumas já estão em curso. Outras irão surgir à medida que a libertação de Mossul se concretizar no terreno.

2. Os desentendimentos entre aliados contra um inimigo comum durante as operações militares e/ou após a vitória, não são propriamente uma novidade. Exemplos no passado abundam. Um exemplo histórico que talvez seja elucidativo são as guerras balcânicas de 1912-1913 que precederam a I Guerra Mundial. Os territórios do antigo Império Otomano na Europa foram atacados por uma coligação, movida por um inimigo comum e uma perspectiva de ganhos territoriais e populacionais. Foi assim que a Macedónia otomana foi conquistada por uma aliança improvável de Estados Balcânicos — Bulgária, Grécia, Sérvia e Montenegro —, os quais usualmente rivalizavam entre si nas reivindicações territoriais. Após a vitória sobre o inimigo comum, surgiram rapidamente disputas que originaram tensões políticas e uma nova confrontação militar. O resultado foi uma segunda guerra, pelos despojos da vitória, onde os otomanos aproveitaram para recuperar parte do território perdido.

3. Uma perspectiva histórica pode também ajudar a perceber aquilo por que se luta em Mossul. O objectivo generalizado de derrotar e expulsar o Daesh é apenas a parte mais visível e conveniente para todos os intervenientes envolvidos na campanha militar — a parte que torna a guerra legítima para a opinião pública internacional. Há outros objectivos dos diferentes actores, alguns dos quais mergulham nas profundezas do passado. Durante a I Guerra Mundial, na frente da Mesopotâmia, foram os britânicos que derrotaram o Império Otomano em 1917-1918. A cessação das hostilidades ocorreu com o armistício de Mudros, a 30 de Outubro de 1918. Mas as forças militares britânicas nessa frente terão avançado sobre Mossul, quando a guerra já deveria estar terminada. Esse é, pelo menos, um dos argumentos da Turquia para reclamar direitos sobre a região Norte do Iraque. Nos anos 1920 não teve sucesso devido à desproporção de poder militar e político. A disputa com a Grã-Bretanha acabou por ser submetida à Sociedade das Nações (SdN), que deu razão aos britânicos. A antiga província otomana, maioritariamente composta por populações curdas, mas também árabes e turcomanas, passou a integrar o Iraque. Os nacionalistas turcos sentem-se mal batidos. Procuram uma oportunidade para reabrir a reivindicação.

4. Na batalha de Alepo o passado também ajuda a compreender o que está em jogo. A Rússia tem por objectivo recuperar o prestígio e influência perdidos com o colapso da União Soviética. O Irão quer manter o seu poder sobre a Síria, através de um continuum que vai até à costa mediterrânica, passando pelo Iraque e Líbano (Hezbolllah). Num mundo onde o religioso e o político estão intrincadamente ligados, a luta entre xiitas e sunitas desperta rivalidades milenares. Para a Arábia Saudita o pior inimigo é o regime de Bashar al-Assad. Não por este ser antidemocrático e violador dos direitos humanos, mas por ser dominado pelos alauítas, próximos do xiismo e do Irão. Quanto aos turcos, para além da ideologia islamista de Erdogan, que o atrai pelo Islão sunita, há questões territoriais que os movem. O actual Hatay era parte da Síria, sob mandato francês da Sociedade das Nações. A anexação turca em finais dos anos 1930 nunca foi reconhecida pela Síria. Um novo poder sunita, que aceite de iure a actual fronteira, é útil. Mas a Turquia tem ainda a espinhosa questão curda que a guerra fez reemergir na Síria, no Iraque e no seu próprio território. Uma coisa une estes Estados normalmente hostis: ninguém quer um Curdistão independente.

5. Alepo e Mossul. Cada uma tem várias guerras dentro de si. A primeira confrontação é a das grandes potências mundiais: a Rússia joga forte em Alepo, os EUA jogam forte em Mossul. A segunda é a guerra das potências regionais — Turquia, Irão e Arábia Saudita —, que têm interesses directos nesses conflitos e os seus próprios partidários locais no terreno. A terceira guerra é a das múltiplas facções locais que lutam entre si pela supremacia. Nestes conflitos são instrumentalizadas pelas potências regionais e mundiais, mas também as procuram instrumentalizar em seu proveito. O timing das batalhas de Alepo e Mossul não é um acaso. Em Alepo, a Rússia e Bashar al-Assad procuram uma vitória decisiva que permita readquirir o controlo do território e determinar os termos da paz. O facto de os EUA estarem à beira de eleições presidenciais é-lhes favorável. É uma fase pouco propícia a grandes decisões de política externa. Na batalha de Mossul, o envolvimento militar dos EUA é uma sequela da invasão do Iraque em 2003. Barack Obama quer deixar um legado positivo e de boas causas, erradicando as bases territoriais do Daesh. Tenta, também, reafirmar a influência dos EUA no Iraque pós-Saddam Hussein, de domínio xiita pró-iraniano.

6. Os riscos ligados às batalhas de Alepo e Mossul são grandes. Novas crises humanitárias graves podem surgir, desencadeando uma ainda maior vaga de refugiados para a Europa. Muito provavelmente islamistas-jihadistas expulsos da Síria e do Iraque vão procurar misturar-se com as vagas de refugiados que fogem da guerra e da miséria e fazer novos atentados em solo europeu. A criação de novas realidades militares no terreno faz aumentar as possibilidades de choques de interesses entre as potências envolvidas (EUA e Rússia), bem como das potências regionais (Turquia e Irão, mas também Arábia Saudita). O Iraque e a Síria são uma espécie de linhas na areia, resultantes de uma divisão política mais ou menos arbitrária: o acordo Sykes-Picot de 1916, entre britânicos e franceses. Veremos se das batalhas de Alepo e Mossul sairá o reatar da sua normalidade como Estados ou uma trágica desagregação.

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