Alemanha, o centro do projecto europeu

Estaremos a ser demasiado condicionados pelas estratégias dos alemães? Talvez.

Após a Primeira Guerra Mundial, estadistas europeus assinaram o Pacto Kellogg-Briand, que pretendia eliminar para sempre a guerra na Europa. Passadas menos de três décadas, após a Segunda Guerra Mundial que eliminou da humanidade 60 milhões de pessoas, estadistas europeus assinaram o Tratado de Paris que iniciou o processo que hoje corporiza a União Europeia.

Apesar da elegante profusão de declarações faraónicas, a Europa criou alguns dos mais mortíferos horrores da história do mundo neste último século. É genuína a generosidade e a boa intenção, mas se entramos no domínio dos dogmas perdemos lucidez. E noção do perigo.

Todos hoje reconhecem (e muitos já temem) a óbvia liderança da Alemanha na Europa. Esse predomínio irá acentuar-se muito mais na próxima década. Contudo, embora a UE pareça hoje girar em torno da Alemanha, a realidade é que o “Projecto Europeu” foi concebido, desde o início, em função desse país. De certo modo, a centralidade da Alemanha na UE é uma essência desta, desde o início.

Após o horror da ideia de hegemonia nazi na Europa, todos sabiam que a Alemanha, apesar de destruída, teria a energia e a capacidade de se reerguer. Todos temiam que essa futura Alemanha renascida voltasse a projectar a sua força “à solta”. Daí se ter considerado essencial envolver apertadamente aquela nação num projecto colectivo que a condicionasse e a mantivesse sob várias formas de interdependência limitadoras. A integração dos mercados foi uma ideia inteligente.

Todavia, entretanto outra nova realidade se agigantava na Europa — a Guerra Fria, o temor da aniquilação pela comunista União Soviética, que também ocupava uma enorme parte da Europa Central e de Leste. É importante não esquecer que é incorrecto afirmar-se que a Alemanha foi um dos fundadores do Projecto Europeu. Existiam dois países distintos a Alemanha Ocidental (fundadora dessa ideia) e a Alemanha Oriental, tutelada pelo poder soviético. Durante décadas o que hoje conhecemos como Alemanha esteve dividida entre dois países inimigos. Durante décadas Berlim esteve dividida e sob o controle de potências estrangeiras. Quando a União Soviética implodiu e se desagregou no início a década de 1990 as duas Alemanhas reunificaram-se. Estava lançada uma nova etapa na projecção da Alemanha. Mais tarde, a massiva adesão à União Europeia das nações da Europa Central e de Leste anteriormente comunistas aumentou ainda mais a centralidade da Alemanha na UE alargada, dado que este país consolidara em poucos anos uma enorme influência política e económica nessa região.

A criação do Euro estabeleceu uma dinâmica de disfarçada diferenciação cambial que, em cada ano que passa, incrementa a competitividade dos preços dos produtos alemães e diminui a competitividade dos de países como Portugal. A Alemanha tem uma co-responsabilidade na anarquia do recente problema dos refugiados, sendo de realçar que esse país é beneficiado com esse fluxo de entradas, por se encontrar em violenta queda populacional desde há uma década. Em 2014 a população alemã era de 81 milhões mas poderá ser de apenas 68 em 2060 sem uma política de intensa imigração. Estaremos a ser demasiado condicionados pelas estratégias dos alemães? Talvez. Mas, de facto, não podemos levar a mal que a Alemanha saiba trabalhar, que seja eficiente, que tenha uma visão inteligente e capacidade de liderança num continente que não as tem.

Os alemães controlam a maior economia da Europa, pagam grande parte das aventuras e dos disparates que os outros europeus geram e o seu poder galopante começa a preocupar. Não é necessariamente um perigo, mas uma inquietação.

Pela primeira vez em 25 anos a Alemanha vai aumentar as suas forças armadas e investirá 130 mil milhões de euros até 2030 em novos equipamentos militares. Neste contexto de poder crescente da Alemanha, esta nação ainda não tem a força de uma potência global, mas começa a ter um poder talvez excessivo para a Europa. A negociação da Alemanha em matérias de segurança internacional faz-se já, frequentemente, mais com os Estados Unidos e com adversários como a Rússia do que com Bruxelas. O que aconteceria se um dia, como Trump preconizou, os Estados Unidos abandonassem a NATO, numa fase de um novo grande poder da Alemanha e da Rússia, numa Europa em agonia económica e financeira sem capacidade para financiar a sua defesa?

E, enquanto andamos entretidos a imaginar o que sucederia se um país como a Grécia ou a Itália abandonasse a UE, que sobreviveria, talvez um dia tenhamos que confrontar outra questão o que aconteceria se, um dia, a Alemanha muito mais forte e autónoma, decidisse abandonar a União Europeia? Talvez, afinal, desde sempre o conceito do “Projeto Europeu” tenha sido excessiva e imprudentemente dependente da Alemanha.

Um dos perigos do futuro europeu é a ingenuidade com que se supõe que a multiplicação de declarações faustosas substitui uma verdadeira visão estratégica de um mundo que mudou radicalmente deste que, após a Segunda Guerra Mundial, se idealizou uma nova ideia da Europa, agora, parcialmente ultrapassada.

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