Agora é mesmo a sério

Substituindo “migrações” por “judeus”, parece que estamos em 1933: o que os nazis pretendiam fazer com os judeus era, também então, “vital” para a Europa e para a Hungria, que em 1938 adotou legislação própria para os discriminar; em 1942-44, 600 mil judeus húngaros foram mortos.

1. A vitória de Trump normaliza a extrema-direita. Trump passará a ser tratado com toda a normalidade pelos media e pelos governos. Como se um novo tempo tivesse começado – ou regressado... O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, acha que, com a vitória de Trump, a “civilização quebrou uma barreira ideológica para regressar à verdadeira democracia”. Somando o que tem sido o governo de Orbán e as propostas de Trump, a “verdadeira democracia” que aí vem é feita de policiamento e militarização generalizados, controlo dos media, racismo e intimidação das minorias, manipulação das maiorias. Que a extrema-direita tenha conseguido convencer grande parte da opinião pública de que estas são opções necessárias para resolver os nossos problemas, que se trata de bom senso depurado de politicamente correto, é porque uma grande parte do espaço mediático e de quem domina politicamente o Ocidente assumiu as mesmas bandeiras e práticas. É por isso que, para Marine Le Pen, a vitória de Trump “não é o fim do mundo [mas] apenas o fim de um certo mundo” - por outras palavras, o fim de um regime. E a promessa de um novo.

2. Uma sociedade que sacraliza a riqueza escolhe ricos para a representar. Trump, como já Berlusconi o foi, é um símbolo da suprema aspiração do capitalismo: transformar o dinheiro em exercício de poder e domínio sobre os outros. Para esta gente, quem é rico é-o por mérito próprio - o mérito de manipular o mercado, da lei do mais forte e da conquista de espaço mediático. Trump e Berlusconi fizeram fortuna à custa de ligações com o mundo político e judicial, esfregando nos olhos do boquiaberto espetador de TV a sua riqueza e os produtos dela.

Um dia, ou porque os seus emissários no poder político caem em desgraça (caso de Berlusconi nos anos 90), ou porque o ego os empurra para a aventura, lançam-se diretamente na arena política e apresentam-se como campeões da mesma retórica anti-plutocrática do fascismo dos anos 30: um dos homens mais ricos dos EUA, que está no centro da oligarquia americana, denuncia as maldades do sistema e promete vingar as vítimas do empobrecimento.

Há 80 anos, os nazis diziam exatamente a mesma coisa – mas, salvo os judeus cujos bens foram expropriados, nunca os grandes patrões alemães ganharam tanto dinheiro como sob o nazismo, guerra incluída. Pelos vistos, não há nada de mais convincente que um rico que, em nome dos pobres, se queixa dos outros ricos. “Quem criou este pesadelo em que nos encontramos  foi o neoliberalismo”, cuja “mundividência é plenamente corporizada por Hillary Clinton e a sua máquina”, lembra Naomi Klein. “O que é preciso entender é que há um monte de gente em sofrimento. Sob políticas neoliberais de desregulação, privatização, austeridade (...), os seus padrões de vida caíram a pique. Perderam empregos, pensões, muita da rede de segurança que costumava tornar menos assustadoras as suas perdas. Anteveem o futuro dos seus filhos ainda pior do que o seu presente precário.” Se a sua resposta é “atacar imigrantes e negros, insultar muçulmanos e humilhar mulheres”, limitam-se  a reproduzir os comportamentos de quem manda (Guardian, 10.11.2016).

3. O racismo à solta. Orbán já em julho dissera que “a política externa e de migrações defendida [por Trump] é boa para a Europa e vital para a Hungria”. Substituindo “migrações” por “judeus”, parece que estamos em 1933: o que os nazis pretendiam fazer com os judeus era, também então, “vital” para a Europa e para a Hungria, que em 1938 adotou legislação própria para os discriminar; em 1942-44, 600 mil judeus húngaros foram mortos. A euforia da extrema-direita sente-se já todos os dias na rua, nas agressões a negros, a latino-americanos e a muçulmanos nos EUA, na caça ao estrangeiro na Grã-Bretanha, na perda total da vergonha racista em França, na Alemanha, na Europa Centro-Oriental.

A vitória de Trump confirma (como antes as de Berlusconi) que é perfeitamente possível assumir um programa desavergonhadamente racista contra uma parte dos subalternos (muro contra mexicanos=violadores e criminosos; expulsão de refugiados sírios; intimidação dos afroamericanos; humilhação de mulheres e de minorias sexuais) e ganhar-se a condescendência da maioria: “ele não fará nada do que diz...”, é o que julgam muitos dos que nele votaram. Os livros de História estão cheios de citações de quem, com Hitler, julgava exatamente o mesmo. A extrema-direita ainda pode ser travada. Mas só se levada a sério e a sério combatidas combatidas as condições que permitem o seu avanço.

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