A zona fértil

Que procura esconder um terrorista que ataca diretamente crianças e jovens? Talvez procure esconder-nos o seu receio de já estar a perder? É possível.

Desde o ataque perpetrado pelo terrorista de extrema-direita Anders Breivik, na ilha norueguesa de Utøya, há seis anos, que não ocorria na Europa um ataque terrorista tendo por objetivo principal assassinar crianças e adolescentes. Esse passo atroz foi franqueado anteontem, em Manchester, no ataque já reivindicado pelos terroristas islâmicos do ISIS, que fez mais de vinte vítimas mortais entre os espectadores de um concerto de pop juvenil.

Não há palavras, e é preciso escrever apesar das palavras que não há. Às vítimas e às suas famílias devemos a tentativa de encontrar algo de justo, algo de apropriado, não para dizer — nisso inevitavelmente falharemos — mas para pensar. Enquanto falhamos em encontrar palavras, o nosso esforço de ao menos procurá-las é um gesto interior mínimo de respeito pelo sofrimento dos nossos próximos. Depois sai o que sai, conforme o que melhor pudermos: uma palavra de solidariedade para com as vítimas ou um palavrão insultuoso contra os criminosos. Mas é preciso tentar.

Quanto ao terrorista, talvez a melhor coisa seja pensar no que ele não nos quer dizer. Digo bem: o que ele não nos quer dizer. O que ele tenta esconder-nos. Todos os terroristas, de uma forma ou de outra, pretendem dizer-nos qualquer coisa. Procurar saber o que é dignificaria o ato deles com um diálogo que eles não merecem. Por outro lado, procurar saber o que nos escondem dá-nos as pistas de que precisaremos para os confrontar.

Que procura esconder um terrorista que ataca diretamente crianças e jovens? Talvez procure esconder-nos o seu receio de já estar a perder? É possível. Na sua reivindicação do atentado de Manchester, o ISIS falava das vítimas como “cruzados”, ou seja, como se fossem soldados cristãos na estúpida guerra de civilizações com que o ISIS (e infelizmente não só o ISIS) sonha. Ora, tentar descrever crianças como alvos de combate primário é uma impostura excessivamente cretina. Se o ISIS escolhe reivindicar um atentado destes é porque já se apercebeu que tem cada vez menos capacidade de nos aterrorizar, e por isso terá de escolher objetivos e formas de agir cada vez mais captadoras da nossa atenção. O terror é monopolista. O terror não quer que pensemos em mais nada. De cada vez que somos capazes de entender isso, e não ceder à monopolização do pensamento, o terror perde.

Não se pode no entanto cair na complacência de pensar que lá porque o ISIS está a perder ele se tornará menos perigoso. Teremos de nos fortalecer mentalmente para a possibilidade de os ataques se tornarem mais cruéis — porque mais captadores de atenção, mais monopolizadores — à medida que o ISIS for perdendo capacidade operacional e de recrutamento. É impossível prever quanto tempo isto durará. A única coisa que é possível afirmar com certeza é que é necessário resistir a todas as provocações do ISIS para que se desencadeie a tal “guerra de civilizações”.

Na base da estratégia do ISIS está a ideia de que é preciso destruir aquilo a que eles chamam “a zona cinzenta”, ou seja, a área de convivência entre muçulmanos e não-muçulmanos. A própria expressão revela o erro de quem vê o mundo a preto-e-branco e não tolera matizes. A zona cinzenta não é cinzenta. É uma zona fértil, onde não só convivem todas as nossas religiões, crenças e descrenças, mas onde está a vontade humana de diversão, de criatividade, de alegria, de amizade, de liberdade. É essa zona fértil que eles atacam quando atacam a infância num lugar de divertimento. Por isso podemos afirmar com segurança que eles estão condenados à derrota. Todos sabemos que essa zona fértil é irreprimivelmente humana. Nada, nem a ditadura mais feroz ou o fanatismo mais cruel, consegue conter o que aí se planta. O terreno é demasiado fértil, a semente demasiado forte.

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