A União Europeia não é a origem de todos os males

A ameaça que paira sobre a Europa coloca-se no plano da consciência moral.

A crise da consciência europeia, particularmente manifesta no tratamento da questão dos refugiados, tem tido, entre outras consequências perniciosas, o efeito de favorecer o surgimento de infundadas críticas à União Europeia, como se fosse ela a origem de todos os males. Ocorre que isso não é verdade. Contra ventos e marés, representantes dos órgãos mais comunitários, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu, têm procurado encontrar soluções condignas para a crise dos refugiados, inspiradas nos princípios e valores associados à fundação do projecto europeu. Jean-Claude Juncker anda há quase um ano a reclamar a adopção do plano de recolocação de refugiados por ele proposto, na sua primeira versão, em Maio de 2015. Há poucos dias, numa reunião dos líderes dos partidos socialistas europeus em Paris, na qual também participou António Costa, foram defendidas as sagazes propostas de resposta ao drama dos refugiados contidas num documento da autoria da deputada europeia Maria João Rodrigues ("Investing in a safe and humane European response to the refugees challenge"). Ontem mesmo, por uma larga maioria, foi aprovado um relatório na Comissão das Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos do Parlamento Europeu onde se preconiza a criação de um sistema centralizado de recepção de pedidos de asilo, e se propõe a atribuição de vistos humanitários a serem requeridos nas embaixadas e nos consulados da União Europeia nos países de origem ou de trânsito dos refugiados. Este relatório é da autoria conjunta de uma deputada do PPE e de uma outra do grupo dos Socialistas & Democratas, o que significa um entendimento de fundo das duas principais famílias políticas europeias no contexto específico da eurocâmara.

As coisas mudam radicalmente de figura quando se passa para o plano dos governos nacionais e das suas respectivas oposições. Aqui, revelam-se diferentes comportamentos, parecendo contudo prevalecer uma linha pouco conforme com os preceitos morais e políticos identificados com o ideário europeu.

Esta distinção é imprescindível para não incorrermos em confusões que acabam por beneficiar os adeptos de leituras e posições marcadamente extremistas. Se há uma lição a retirar deste processo, ela é a de que a exaltação neo-soberanista, vinculada à recuperação de um imaginário nacionalista, ameaça reavivar o discurso político xenófobo, racista e demagogo. É isso mesmo que se tem observado um pouco por toda a Europa, sobretudo em vários países do Leste, aqui com a especial agravante de ser produzido pelos próprios governos em funções. Como um veneno, esse discurso vai-se disseminando por quase todo o continente europeu, atingindo países e opiniões públicas que se julgavam imunes a tal risco.

A expansão do vírus nacional-populista pela Escandinávia e pelos Países Baixos de tal forma contraria a sua tradicional imagem de tolerância que adquire ressonâncias verdadeiramente escandalosas. O consenso republicano que durante muitas gerações prevaleceu em França tem vindo a ser debilitado, desde há alguns anos, por uma extrema-direita capaz de suscitar adesões em diversos estratos económicos e culturais da sociedade gaulesa. E até há pouco tempo, a Alemanha, fortemente marcada pelo trauma nazi, parecia impermeável ao avanço dessas correntes portadoras de um discurso segregador. Desgraçadamente, também neste país se começam a registar mudanças alarmantes. Numa primeira fase, ocorreram ataques a centros de acolhimento de refugiados e emergiu um movimento de extrema-direita, anti-Islão, o Pegida; agora assiste-se ao crescimento eleitoral de uma formação política extremista, que se iniciou na contestação à moeda única mas só adquiriu real expressão quando passou a fazer seus a vulgata identitária e o discurso anti-refugiados.

Os resultados verificados nas eleições realizadas no último domingo em três estados germânicos revelam quão periclitante é a posição da chanceler Merkel e quão profunda é a erosão eleitoral que afecta actualmente o SPD. Angela Merkel, cuja coragem e desassombro na abordagem deste assunto devem ser sempre saudados, arrisca desagradar a uma parte significativa do seu eleitorado histórico, com a perda de votos para a extrema-direita daí potencialmente resultante. A compreensão, se não mesmo a adesão que suscita a sua abertura aos refugiados em campos políticos tradicionalmente adversos, nunca será suficiente, no plano estritamente eleitoral, para neutralizar o aludido perigo de transferência de votos. Logo, o seu risco político é imenso, o que até torna mais admirável a forma como se tem comportado. Já o SPD continua a viver o drama do enfraquecimento histórico da social-democracia clássica, no contexto de uma sociedade em grande parte dominada por temas pós-materialistas e pós-industriais.

Contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, o declínio do SPD não resulta da sua participação no governo de coligação com o centro-direita, nem tão-pouco de qualquer hipotética abjuração dos seus traços distintivos. Este declínio tem sido praticamente contínuo e resulta da grande dificuldade em encontrar um programa político adequado às expectativas de uma sociedade radicalmente diferente daquela em que o partido se originou e cresceu. A expressiva vitória dos Verdes num dos principais estados alemães  ?  o de Baden-Württemberg  ?  ao cabo de um ciclo de quatro anos de governação em coligação com um SPD minoritário, reforça esta apreciação. A quebra dos sociais-democratas não favorece o partido de extrema-esquerda Die Linke, que foi fortemente penalizado num estado do Leste alemão onde costuma ter forte implantação eleitoral. Isto é, a ingénua  ?  e até mesmo indigente  ?  teoria que alguns espíritos pouco sofisticados apregoam, segundo a qual a crise dos partidos sociais-democratas resulta do seu deslumbramento pelo chamado neoliberalismo ou da sua auto-subalternização às força políticas do centro-direita, não dispõe do mais leve fundamento. Contribui até para prejudicar qualquer reflexão séria e produtiva sobre o assunto.

Na semana passada, falei do risco do colapso moral da Europa. Tenho sempre muito cuidado em transitar do campo das categorias políticas para o campo das categorias morais, pelos múltiplos perigos que tais transições encerram. Não tenho porém qualquer dúvida de que, neste caso, a ameaça que paira sobre a Europa se coloca no plano da consciência moral. Felizmente que há muita gente a pensar da mesma forma.

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