A União Europeia e a “geo-ideologia”

Os países do Leste, tenham dominância de direita como a Polónia ou a Hungria ou hajam predominância de esquerda como a Eslováquia, a Roménia ou a República Checa, mostram a mesma desconfiança e a mesma reserva em face do projecto europeu.

1. Na última semana, o futuro da União Europeia esteve no centro da discussão pública e mediática. Para tanto bastava, na verdade, a comemoração dos 60 anos do Tratado de Roma. Mas os atentados em Londres, a visita do Presidente da República a Bruxelas, as inenarráveis declarações de Dijsselbloem, a ressaca das eleições holandesas, o debate nas presidenciais francesas e o primeiro embate Merkel-Schultz no Sarre puxaram pelo tema. Curiosamente, tirando o ataque terrorista, todos os outros indutores da atenção da opinião pública remetiam, de modo mais directo ou indirecto, para a fissura entre os países do Norte e os países do Sul. Em muitos casos, vimos até fundamentalistas do laicismo aceitar tratar a questão sob a perspectiva da mundividência religiosa, opondo o Norte protestante ao Sul católico. Há aí falhas evidentes de leitura do mapa religioso. Os dois estados mais ricos da Alemanha são do sul e são católicos; a Baviera, em que o catolicismo conservador ainda tem forte implantação, é mesmo, em matéria financeira e económica, o mais inflexível dos estados federados alemães. Pense-se na vizinha Áustria e até no sul da Holanda e encontrar-se-á uma cultura fortemente marcada pelo catolicismo e até por um catolicismo identitário. Max Weber, como aliás Michael Novak demonstrou, não estava assim tão certo ao ligar a prosperidade e o capitalismo do Norte da Europa à ética protestante. O ponto, todavia, não é este; o ponto é mesmo outro e encheu os debates lusitanos sobre o futuro da União. Tudo se centrou precisamente nesse eixo Norte-Sul e quase todos viram nessa tensão o grande risco de desmoronamento do projecto europeu. Creio que, sem negar a importância dessa linha divisória, intercede aqui um erro de perspectiva. 

2. Não há dúvida de que existem diferenças sérias de entendimento e programa, especialmente no quadro da moeda única, entre os países do Norte e os países do Sul. Como sempre disse e não me canso de repetir, nos debates europeus não entra só ideologia; entra também muita geografia ou, se se preferir, “geo-ideologia”. Não subestimo, de modo nenhum, as diferenças entre a esquerda e a direita e entre o centro-esquerda e o centro-direita nos vários países. Embora não veja grossas diferenças, diga-se em jeito de parêntesis e por muito que isso cause brado e gritaria, entre direita radical e esquerda radical, já que ambas confluem no total desapego aos pilares e aos princípios da democracia liberal, no profundo anti-geuropeísmo e no ódio ao comércio livre e à globalização. Reconheço que se diferenciam numa matéria humanamente essencial: a direita radical é xenófoba; a esquerda radical é inclusiva. Mas a sua intervenção política é identicamente populista e os regimes para que tendem são simetricamente democracias iliberais. Dizia, pois, fechando o parêntesis sobre os extremos que se tocam, que não subvalorizo às diferenças entre o arco das esquerdas, dos centros e das direitas nesta matéria económica. Mas ninguém espere de um pouco provável, mas verosímil, chanceler Schultz uma mudança relevante da orientação económico-financeira da Alemanha. O SPD está no Governo e assinou um intensamente negociado acordo de coligação, que validou por inteiro a política depois executada por Wolfgang Schäuble. Dijsselbloem é socialista e o chanceler austríaco também. Não creio que seja preciso dizer mais. Por mais que haja afinidade ideológica nas famílias políticas transnacionais, em qualquer sistema federal e mais ainda num sistema de integração não federal como é o europeu, a proveniência geográfica, nacional ou estadual, tem um peso enorme na construção das propostas e das respostas políticas.

3. Isto dito e assente, o que de seguida escrevo pode surpreender. Estou absolutamente convicto de que, não havendo uma vitória de Le Pen nas presidenciais gaulesas – que levaria, como a própria ontem anunciou, à morte da União –, não é pela tensão Norte-Sul que o projecto europeu pode soçobrar. Os países do Norte e do Sul da velha Europa ocidental conhecem-se bem e compreendem-se razoavelmente. Há séculos de convivência pacífica e belicosa, de intercâmbio cultural e económico. Vão ser capazes, como têm sido, de encontrar uma bissectriz, um equilíbrio de posições, que acabará por levar a carta a Garcia, por mais incidentes e tropeções que haja pelo caminho. Diferente é – e aí é que reside o potencial paralisador e desagregador – a linha de fractura entre o Ocidente e o Leste europeu. Nas múltiplas e profundas discussões de resoluções políticas e de documentos programáticos sobre o futuro da Europa em que, por mister de ofício, participo, o foco de tensão é muito mais leste-oeste do que norte-sul. Os países do Leste, tenham dominância de direita como a Polónia ou a Hungria ou hajam predominância de esquerda como a Eslováquia, a Roménia ou a República Checa, mostram a mesma desconfiança e a mesma reserva em face do projecto europeu. Não tivessem centenas de milhar de emigrantes na Grã-Bretanha e seriam os aliados naturais do Reino Unido. O que, tudo desbravado, se compreende pela equação “história-geografia”. É, aliás, bem conhecido e muito glosado o dito polaco de que a Polónia trocava de bom grado a sua gloriosa história por uma melhor geografia. Na verdade, ao longo de séculos, estiveram alternadamente dependentes dos velhos Impérios, fossem os germânicos (austríaco e prussiano), o russo ou o otomano, sem contar com a investida napoleónica. Para eles, com este lastro endémico de independência fugaz e intermitente, Bruxelas faz lembrar Viena, Moscovo, Berlim ou Constantinopla. Pressionados por lideranças iliberais, na Hungria como na Eslováquia, na Polónia como na Roménia, os partidos do centro-esquerda e do centro-direita vão atrás da agenda populista e converteram-se nos pólos mais reticentes e relutantes da integração europeia. O futuro das tensões passa mais por aqui do que pela emulação ocidental entre o norte e o sul.  

Sim e Não

SIM. Declaração de Roma. A aposta em quatro prioridades – segurança, conclusão da união económica e monetária, coesão e dimensão social e reforço do pilar externo – promete mais do que se esperava. Esperemos.    

NÃO. TAP. A propaganda da “ponte aérea” não pode calar o ataque que é feito ao Porto, privilegiando Vigo. E desistindo de rotas como Bruxelas, Milão, Barcelona e Roma que, na concorrência, continuam sobrelotadas e caras. Triste e injustificável.

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