A retórica da campanha deu lugar aos insultos nas ruas

Polícia britânica confirmou aumento de 57% nas queixas de incidentes racistas. Agressões verbais e propaganda xenófoba visaram imigrantes europeus e minorias étnicas

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O preconceito e intolerância da campanha está a ser denunciado no Reino Unido AFP/JUSTIN TALLIS

Domingo de manhã, Hammersmith, zona oeste de Londres. Na fachada da associação cultural que há 40 anos representa a comunidade polaca no Reino Unido, alguém escreveu “Go Home”. Dois dias antes, postais com a frase “Saída da UE – Acabaram-se os parasitas polacos” foram colocados em caixas de correio e automóveis junto de uma escola em Huntingdon, no Leste de Inglaterra. No Twitter, Agata Brzezniak, uma estudante de doutoramento polaca, contou que foi abordada no autocarro por uma mulher que lhe disse: “Se fosse a si eu estava assustada e preparava-me para pedir um visto de residência no meu país”.

O aumento da xenofobia num país que se orgulha de ser tolerante era uma das consequências mais temidas do referendo à União Europeia depois de a campanha ter sido dominada pelo tema da imigração, que muitos eleitores culpam pela descida dos salários, pelos hospitais e escolas sobrelotados, pelas mudanças demográficas nas suas comunidades. Um desagrado a que o partido populista UKIP deu voz na campanha e que agora se ouve sem dificuldade nas ruas e mesmo na televisão – numa reportagem transmitida pelo Chanel 4 News durante o fim-de-semana um eleitor de uma cidade no Norte de Inglaterra explicou que votou pela saída da UE apenas por “causa da imigração”, para “impedir os muçulmanos de virem para este país”.

O que ninguém esperava era a sucessão de incidentes racistas dos últimos dias, desencadeando uma onda de estupefacção e medo que as redes sociais amplificaram. O Twitter foi inundado por histórias de quem ouviu insultos ou viu outros serem insultados, como o consultor polaco Max Fras. No sábado, estava num supermercado em Gloucester com o filho quando um homem que esperava na fila começou a gritar: “Isto é Inglaterra, os estrangeiros têm 48 horas para se porem a andar. Quem é que é estrangeiro aqui?” Em Romford, subúrbio a leste de Londres que o PÚBLICO visitou no sábado, um homem foi fotografado vestindo uma t-shirt com a inscrição “Ganhámos! Agora mandem-nos embora”.

Numa tentativa de reacção, foi criada uma página no Facebook para reunir os relatos de incidentes racistas e, em menos de 24 horas, mais de cinco mil pessoas tinham aderido. “Quisemos criar um espaço para as pessoas que se sentiam inseguras”, disse à BBC Sarah Childs, que lançou a ideia juntamente com amigos de origem indiana e paquistanesa.

Porque não são apenas os cidadãos europeus, especialmente os polacos, que se viram visados nos últimos dias. Há também negros, árabes e asiáticos, nascidos e criados no país, a ouvirem os mesmos insultos.

O Conselho Muçulmano no Reino Unido revelou ao jornal The Times que desde sexta-feira reuniu informações de mais de cem casos que podem constituir “crimes de ódio”, incluindo um protesto violento junto a uma mesquita de Birmingham. Shazia Awan, empresária galesa que fez campanha pela permanência, foi aconselhada por um seguidor no Twitter a “fazer as malas e regressar a casa”. “Esta campanha foi vil e racista” e “arruinou o país para sempre”, lamentou.

Graffiti desprezível

A polícia britânica prometeu “tolerância zero” e pediu que ninguém esconda os insultos ou agressões – o Times noticiou que dois cidadãos polacos, pai e filho, foram espancados sábado à noite no Leste de Londres, mas não há certezas sobre as motivações do incidente. E já nesta segunda-feira, revelou que o número de queixas apresentadas nos últimos quatro dias através de um site especializado aumentou 57% em comparação com o mesmo período da semana anterior, num total de 85 incidentes. “Não é coincidência que isto tenha acontecido depois da votação sobre a UE”, disse ao jornal Guardian uma fonte da polícia.

“Como muitos polacos neste país temia que o resultado do referendo pudesse aumentar a intolerância, a discriminação e racismo. Mas não pensei que fosse tão agressivo nem tão rápido”, lamentou Brzezniak, que vive há oito anos no Reino Unido, numa entrevista ao Independent. A embaixada polaca em Londres mostrou-se também “chocada e profundamente preocupada” com incidentes contra os seus cidadãos, ao mesmo tempo que agradeceu o apoio recebido – nesta segunda-feira no centro cultural polaco em Hammersmith, a zona de maior concentração de polacos em todo o país, foram recebidas dezenas de ramos de flores com mensagens de solidariedade.

Referindo-se ao “graffiti desprezível” deixado no centro cultural, o primeiro-ministro demissionário, David Cameron, afirmou no Parlamento que tanto os imigrantes como as minorias étnicas “deram uma contribuição fantástica para o país”. “Estes crimes serão combatidos”, prometeu. Uma mensagem idêntica à do mayor de Londres, Sadiq Khan, que revelou ter dado instruções à polícia para redobrar a vigilância. “É muito importante que nos mantenhamos vigilantes perante qualquer aumento de crimes que podem servir-se do referendo da semana passada para tentar dividir-nos”, afirmou.

Sem se referir directamente aos incidentes, Boris Johnson, líder da campanha pela saída da UE, escreveu também no Telegraph que não podem restar dúvidas de que “o Reino Unido é parte da Europa e sempre será”. “Os cidadãos europeus que vivem neste país terão os seus direitos totalmente protegidos.”

Mas é muito difícil distanciar os incidentes do tom da campanha, que teve o seu ponto mais baixo no cartaz divulgado por Nigel Farage, o líder do UKIP, que lembrava o milhão de refugiados que chegou à Europa no último ano – a mensagem implícita era que muitos poderiam ir para o Reino Unido se o país ficasse na UE. Johnson e os aliados repudiaram o cartaz, mas repetiram à exaustão que o país precisava de “recuperar o controlo das fronteiras” – Farage nunca se retractou.

“A campanha pela saída parece ter legitimado a retórica do ‘outro’. Agora que vamos deixar a UE, algumas pessoas sentem-se confiantes para proferir publicamente opiniões que até agora estavam muito mais reticentes em manifestar”, disse ao Times Jasvir Singh, advogado e activista do Partido Trabalhista. Joanna Ciechnowska, directora cultural na associação polaca, disse ao Guardian que, em 35 anos no país, nunca se sentiu vítima de racismo. “De repente, um pequeno grupo de extremistas sente-se fortalecido. As margens da sociedade sentem que podem fazer tudo porque pensam ter o apoio de metade da nação”.

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