A reinvenção da V República

Estas eleições não são históricas pelos números mas pelo “terramoto” que provocam no sistema partidário.

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Os franceses concederam ao Presidente Emmanuel Macron os meios para governar. No discurso do Louvre, após a proclamação da vitória nas presidenciais, Macron pediu uma forte “maioria para a mudança” e assumiu um compromisso: “Farei tudo para que nos próximos cinco anos para que não haja nenhuma razão para votar nos extremos.” Os eleitores responderam, Macron vai ter extremas dificuldades mas não tem nenhum álibi para falhar.

A vitória poderá parecer excessiva e difícil de gerir para uma força que tem um ano e que só em Julho se constituirá como partido. Ainda a Assembleia não está eleita e já surgem acusações de “desaparecimento da oposição” ou de “tirania da maioria”. A esquerda, em 1981, e a direita, em 2002, tiveram triunfos quase na mesma escala e ninguém viu a democracia em perigo.

O “excesso” dos números deve-se ao sistema eleitoral francês, concebido para produzir maiorias. Desta vez, os resultados terão sido potenciados pela desmoralização de eleitores do Partido Socialista (PS) e de Os Republicanos (LR), traumatizados pela “catástrofe” das presidenciais e a atravessar fundas crises, ideológicas e estratégicas. Também o eleitorado da Frente Nacional (FN) parece muito menos mobilizado do que há um ou dois anos.

A abstenção é um problema mais preocupante. A participação eleitoral nas legislativas tem descido regularmente desde 1993 mas sofreu nesta primeira volta uma quebra de oito ou nove pontos. Os franceses mobilizam-se nas presidenciais e tendem a menosprezar as legislativas, sobretudo a partir da reforma de 2002, que reduziu o mandato presidencial de sete para cinco anos e ditou que as legislativas se realizariam dois meses depois das presidenciais. É nestas que tudo se joga. As legislativas começam a perder autonomia e relevo, o que não é saudável.

E a alternância?

Estas eleições não são históricas pelos números mas pelo “terramoto” que provocam no sistema partidário. O “sistema”, além de sofrer uma aguda crise de credibilidade, estava num impasse. Com a ascensão da Frente Nacional (FN), a paisagem política passou a ser dominada por três pólos, o que pôs em causa o sistema bipolar em que assentava a alternância. A crise era complicada: não podiam governar em conjunto nem fazer acordos entre si, com a agravante de que nenhuma das três forças podia ser maioritária por si só. A proposta de Macron, inédita e inesperada, cortou o nó do impasse e da desconfiança.

E a alternância? A resposta está no processo de reconstrução do sistema partidário tornada inevitável pela vitória de Macron e pelo seu carácter “arrasador”. À esquerda e à direita, há dois extremos, a França Insubmissa (FI) e a FN, que pretendem ocupar os espaços do Partido Socialista (PS) e dos Republicanos (LR). No entanto, também Mélenchon e Marine Le Pen viram goradas as suas expectativas. Nos próximos cinco anos, vai inevitavelmente mudar o quadro político e saberemos então qual será a força que disputará o poder ao partido de Macron. As “duas almas” que dividem o PS e o LR parecem inconciliáveis e têm de se repensar ou divorciar-se, o que levará a inevitáveis realinhamentos.

O resultado destas eleições parece distorcido pelo rigor do método maioritário. Macron tem o projecto de propor a introdução de uma grande dose de voto proporcional que, sem anular as maiorias e a governabilidade, reflicta melhor o pluralismo das correntes políticas e a sua integração nas instituições, inclusive das forças radicais, da FI à FN. Esta reforma ajudará diminuir a dependência dos partidos centrais perante os extremos, que se habituaram a ditar as agendas políticas seja ao PS seja ao LR. E, ao mesmo tempo, deverá reforçar a legitimidade do sistema político.

O politólogo Philippe Raynaud, autor de ensaio publicado em Março (L’Esprit de la Ve République) sobre os “realinhamentos políticos” desde 1958, diagnostica a actual crise como “a emergência de um novo sistema partidário” e não como “crise do regime”. As instituições funcionam e a “revolução Macron” é a melhor ilustração. Os franceses continuam a apreciar “um executivo forte e eleito por sufrágio universal”. Não votaram apenas nas ideias de Macron mas sua visão institucional. Quando ele recusa a figura do “presidente normal” responde a essa ideia de um Presidente “com autoridade”. Se 57% dos franceses dizem aprovar as suas primeiras acções, entre 60 e 65% apreciam sobretudo a sua forma de presidir.

A duração de um regime está na capacidade de se reinventar. Será o que V República estará a fazer.

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