A razão de ser do acordo da UE com o Canadá

A conjugação de esforços entre o centro-direita e o centro-esquerda europeus que, felizmente, se continua a verificar em grande escala, em assuntos essenciais, nas instituições europeias, não deve porém conduzir a uma anatematização primária de todos quantos perfilham opções diferentes.

O Parlamento Europeu aprovou esta semana um acordo comercial entre a União Europeia e o Canadá, comumente designado pela sigla CETA, depois de um longo processo negocial e de uma ampla discussão política e pública. Os tratados comerciais tornaram-se nos últimos tempos num tema de debate acrisolado, originando encontros e desencontros políticos que escapam muitas vezes às regras habituais da confrontação ideológica tradicional. Importará tentar perceber a razão de ser de tudo isto.

Até há poucos anos, os tratados comerciais tinham por objecto quase exclusivo a remoção de barreiras alfandegárias entre as partes envolvidas, diziam respeito sobretudo aos produtores e eram negociados num ambiente de relativo secretismo. As opiniões públicas conviviam bem com esse quadro, dado que não se atribuía uma importância desmedida ao que estava em jogo. Tudo isso mudou nos últimos tempos. Os tratados comerciais passaram a integrar outro tipo de preocupações e decisões, com repercussões muito mais vastas e profundas nas economias e nas sociedades a que se destinam. Da fase da harmonização tarifária passou-se para uma outra, muito mais exigente, que integra objectivos de uniformização normativa em sectores tão importantes como a saúde pública, a segurança alimentar, a proteccão ambiental e até mesmo o modelo de organização social. É por isso natural que o que era visto como um assunto que dizia preferencialmente respeito ao mundo dos produtores passasse a ser percebido como algo que interessava ao universo dos consumidores e dos cidadãos.

Não é pois de estranhar que o tema se tenha convertido numa matéria de especial significado político. É aliás louvável que assim tenha sucedido. Instalada a discussão no espaço público das nossas democracias, a principal preocupação a ter em conta deverá ser a de assegurar a existência de condições favoráveis a um debate informado, sério e esclarecedor. Para que tal suceda impõe-se que o próprio processo negocial seja devidamente escrutinado, quer na esfera parlamentar, quer no domínio público mais geral. É verdade que, como qualquer processo negocial, nunca poderá ser absolutamente transparente, mas só poderão ser aceites limitações a essa mesma transparência desde que claramente justificadas. Para que esse escrutínio possa decorrer com a devida serenidade há que evitar um excesso de polarização, de natureza exageradamente passional, e deve ser valorizada a contraposição de argumentos alicerçados em estudos devidamente elaborados e fundamentados. É claro que nunca alcançaremos uma situação de objectividade analítica total, nem tampouco poderemos aspirar a uma completa evacuação da dimensão emocional que facilmente se agrega a este tipo de questões.

Olhemos para o caso concreto do acordo que agora foi aprovado. Apesar de ter sido objecto de um intenso escrutínio, de ter sofrido múltiplas metamorfoses resultantes da discussão pública que suscitou e de aproximar espaços nacionais caracterizados por uma grande afinidade civilizacional, não deixou de ser alvo de fortíssimas contestações. Não creio que ganhemos muito em estabelecer uma espécie de hierarquia cognitiva ou axiológica entre defensores e opositores do tratado. É melhor tentarmos perceber o porquê de tão intensa oposição ao mesmo.

Sem pretender excluir outros motivos, creio que a razão principal para esta atitude de grande hostilidade em relação a este tipo de tratados, que vai ganhando terreno, resulta da importância que os impulsos de índole nacionalista ou etnocêntrica têm na determinação dos comportamentos individuais. Vários estudos desenvolvidos nos últimos anos demonstram que este tipo de explicação é mais pertinente do que uma outra teoria que aponta para o predomínio de factores puramente económicos na apreciação das vantagens e desvantagens do incremento do comércio internacional. Na verdade, a representação antropológica que está simultaneamente na base do liberalismo e do marxismo, nas respectivas versões mais radicais, e que assenta no predomínio da dimensão económica, tem-se revelado demasiado pobre para a compreensão das principais questões do nosso tempo. Erram por isso aqueles que limitam a sua argumentação a factores de natureza quase exclusivamente económica, seja em nome da exaltação das vantagens da liberalização quase incondicional, seja em nome da demonização do mercado e do comércio livre.

Pela minha parte sou favorável à realização de acordos comerciais, projetando mesmo neles a expectativa de que possam contribuir de modo muito significativo para a regulação do fenómeno da globalização económica, financeira e comercial. Perante o insucesso dos mecanismos de regulação multilateral, de que o exemplo mais sintomático é a inoperância da Organização Mundial de Comércio, só pela via dos acordos comerciais se poderá alcançar o objectivo atrás referido. A União Europeia pode e deve ter neste âmbito um papel preponderante e liderante. A maioria que agora se formou para garantir a aprovação do CETA parece imbuída de genuínas preocupações neste domínio. A conjugação de esforços entre o centro-direita e o centro-esquerda europeus que, felizmente, se continua a verificar em grande escala, em assuntos essenciais, nas instituições europeias, não deve porém conduzir a uma anatematização primária de todos quantos perfilham opções diferentes. Uma das coisas, por exemplo, que não faz qualquer sentido, é a tentativa de identificação entre a extrema-esquerda e a extrema-direita. Se bem que adoptem posições finais idênticas, e nalguns casos cheguem a revelar inesperadas coincidências programáticas, subsistirá sempre uma fronteira inultrapassável a separá-las. Nunca ouvi qualquer deputado da extrema-esquerda europeia a proclamar o racismo ou a xenofobia.

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