A potência do centro

Nenhum país está hoje em condições de assegurar a salvaguarda dos seus interesses fora do quadro da União Europeia. Nem mesmo a Alemanha.

1. O Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, proferiu esta semana no Parlamento Europeu um interessante discurso caracterizado por um forte apelo à união de esforços de todos quantos continuam a defender as vantagens do projecto político que acaba de celebrar os seus 60 anos. Steinmeier é um experiente político social-democrata que desempenhou até há pouco tempo as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros no governo de coligação alemão, e chegou a ser, há uns anos, candidato à chancelaria federal. Apesar do cargo de Presidente da República se revestir na Alemanha de uma natureza predominantemente formal, a personalidade de vários dos seus anteriores ocupantes acabou por outorgar-lhe historicamente um significativo ascendente moral. O actual Presidente inscreve-se sem dúvida nessa tradição, como aliás ficou bem visível na alocução que dirigiu aos deputados europeus.

Otto von Bismarck, o chanceler que na segunda metade do século XIX promoveu a unificação dos estados alemães, escreveu a dado passo nas suas memórias: “Nós devemos convencer o mundo que uma hegemonia alemã na Europa contribui de maneira mais útil, imparcial e menos nociva para a liberdade dos outros do que uma hegemonia francesa, russa ou inglesa.” Para ele, a Alemanha deveria assumir-se como a “potência do centro”, de modo a garantir o equilíbrio do sistema europeu. Os tempos eram bem diferentes dos actuais. Bismarck alcançou o objectivo da unificação alemã através de duas guerras — uma contra a Áustria e outra contra a França — e subvertendo completamente a lógica da política interna germânica. No século XIX eram os liberais, enquanto força política, e a burguesia, enquanto classe social, que mais pugnavam pelo surgimento de um nacionalismo alemão por contraposição ao posicionamento das forças conservadoras e autoritárias que desconfiavam das vantagens da unificação. Ora, Bismarck, ele próprio um representante desse conservadorismo, acabou por impor o ideal da unificação contra os seus aliados naturais, beneficiando do apoio de alguns sectores liberais. O impacto europeu desse processo foi de tal ordem que em Fevereiro de 1871 Benjamin Disraeli se referiu à guerra franco-prussiana e às suas consequências na consolidação da unidade germânica como “um acontecimento político maior do que a Revolução Francesa”. Estas palavras revelam bem quão problemática se afigurava a nova ordem europeia que se estava a instituir. Bismarck percebeu-o bem e desenvolveu uma intensa actividade diplomática para assegurar o equilíbrio de um sistema profundamente instável. Esse equilíbrio assentava num jogo de alianças de intensidade diversa entre as várias potências políticas europeias, com a Alemanha a assumir o tal estatuto de potência central. A sua instabilidade era de tal ordem que não sobreviveu ao afastamento do próprio Bismarck. Conhecemos hoje as consequências trágicas que para a Alemanha e para a Europa daí advieram.

Um dos principais biógrafos de Angela Merkel, Stefan Kornelius, escreveu que a actual chanceler “ainda não encontrou uma resposta clara sobre como resolver o dilema já enunciado por Bismarck: a Alemanha é muito pequena para assumir uma posição hegemónica na Europa e muito grande para garantir o equilíbrio”. Esse é provavelmente o principal problema alemão desde a reunificação ocorrida em 1991 e os tempos mais recentes marcados pela gestão da crise do euro. As coisas mudaram muito do século XIX para hoje: os Estados Unidos da América assumiram um papel de liderança hegemónica, a Europa passou a deter um estatuto de potência central no plano internacional e constituiu-se numa entidade política nova no plano interno. Apesar disso, o estatuto da Alemanha no contexto europeu continua a suscitar controvérsias e inquietações, agora mais no plano geoeconómico do que propriamente no domínio geopolítico.

Nos últimos anos disseminou-se a ideia de que a Alemanha, aproveitando as insuficiências institucionais da União Económica e Monetária, impunha uma linha de orientação política que favorecia a sua forte vocação exportadora no plano mundial e condenava os países do Sul a violentas curas de austeridade económica e socialmente desajustadas. Esta ideia, ainda que muito simplista, gerou um forte sentimento antialemão, devidamente aproveitado pelos sectores políticos mais extremistas de vários países europeus. A verdade é que uma certa obstinação germânica em recusar soluções mais adequadas aos interesses dos países que enfrentavam maiores dificuldades concorreu para que isso acontecesse.

O discurso de Steinmeier foi por isso mesmo muito importante. Assumindo-se como um cidadão europeu, lembrando o carácter complexo — e por isso mesmo muito frágil — deste projecto político, deixou claro que no seu entendimento nenhum país está hoje em condições de assegurar a salvaguarda dos seus interesses fora do quadro da União Europeia. Disse mesmo, a dado passo, que “nós não queremos o retorno a um passado maldito, nós queremos percorrer um caminho comum que nos conduza a um melhor futuro europeu”. Este compromisso deve ter consequências práticas, de modo a que a Alemanha dê um contributo decisivo para a recuperação da confiança no projecto da União Europeia.

2. O primeiro-ministro afirmou que o convite dirigido a Mário Centeno para presidir ao Eurogrupo honra Portugal. Concordo inteiramente. Se, por um lado, tal convite significa o reconhecimento por parte das principais famílias políticas europeias do comportamento exemplar prosseguido pelo Governo português em relação aos nossos compromissos europeus, por outro traduz o reconhecimento das qualidades intelectuais e técnicas do ministro das Finanças. O que não percebo é a recusa em aceitar esse convite, já que a presidência do Eurogrupo em nada colide com o normal exercício de funções governativas em Portugal. Julgo que há mesmo o dever moral de o aceitar. É sabido que está em curso um debate sobre o modelo de organização da nossa zona monetária e sobre a natureza das prioridades da política a levar a cabo no âmbito europeu. A ascensão de uma personalidade como Mário Centeno — um homem que representa bem os valores e as preferências do centro-esquerda europeu — à presidência do Eurogrupo não poderia deixar de ter efeitos muito benéficos. Esta recusa quase imediata de tal convite parece-me assim um erro grave, com nítidos prejuízos para a Europa, para Portugal e para a família política em que o PS se insere. Admito, porém, existirem razões que desconheço.

 

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