A ordem das cabeleiras exóticas

Muitos destes analistas e comentadores não deram conta de que assistimos a uma “desterritorialização” e a uma “desmaterialização” do poder. Entre a queda do muro em 1989 e o ataque às Torres Gémeas em 2001, desvaneceu-

1. Recentemente, em Bruxelas, fui convidado a falar sobre a caleidoscópica situação europeia para um grupo de jornalistas espanhóis de um amplo leque de meios de comunicação social. No decorrer solto e informal da charla, naquele vaivém descontraído e desfiado da conversa, dei-me conta de uma extraordinária e aparente coincidência, de uma inusitada mas surpreendente casualidade. Os grandes cavaleiros ocidentais da nova “ordem” antieuropeia, tendencialmente iliberal, nacionalista, protecionista e, por vezes, xenófoba eram, quase invariavelmente, senhores de cabeleira farta, exuberante e exótica, entre o esculpido e o desgrenhado, caótica e caricaturável, marcante e carismática.

Pensava em Donald Trump, lobrigava em Geert Wilders, cogitava em Beppe Grillo, excogitava em Boris Johnson. E se tirarmos o italiano, heterodoxo e provindo das sempre dúbias hostes latinas, quase podia ser uma exclusiva liga dos “magnos cavaleiros das louras cabeleiras”. Na altura, gracejei, alvitrando a hipótese de todos frequentarem o mesmo salão de cabeleireiro transatlântico, excluído que estivesse, por razões mais do que óbvias, o principescamente bem pago artesão capilar do eterno provisório François Hollande… Para muitos, será decerto um detalhe ou talvez um acidente iconográfico. Para mim, não: é algo mais. Mas, seja como for, longínquo vai o tempo dos líderes políticos muito bem aprumados, robustamente “fit”, impecavelmente vestidos, elegantemente exercitados e com um rosto imberbe a roçar o modelar, que podia adornar uma campanha publicitária dos inconfessados alvores da meia-idade. Os semideuses do olimpo são agora mais humanos, mais redondos, mais carnais, mais vulgares, mais sujos, mais viris, mais boçais, mais cabeludos, mais casáveis com os temores (e não já com os amores) que os deuses sempre inspiraram.

2. Depois de templários e hospitalários, depois de cavaleiros de Malta e cavaleiros teutónicos, depois dos Cister, dos Cluny e de todos os demais, outra Ordem cavalga a conformação da vida europeia, outra Ordem assalta a recomposição do hemisfério ocidental. E ela é, com mais ou menos ironia iconográfica, a Ordem das Cabeleiras Exóticas. Existem decerto excepções na indumentária. Podem ser sereias como a sedutora Marine Le Pen. Podem ser repositórios da matéria primordial vinda de uma “paleo-história” ou de uma “idade do ouro” como o indeformável Putin. Mas, afora as excepções, a torrente é bruta, é magmática, é wagneriana e alastra e emplastra sob o sacro signo da Ordem das Cabeleiras Exóticas.  

3. Multiplicam-se os artigos de opinião, em Portugal e em todo o Ocidente, sobre o regresso do nacionalismo e sobre o modo sobranceiro e negligente como os políticos europeus, pró-europeus e europeístas olham para esse regresso. Em muitos casos, faz-se uma distinção assisada entre patriotismo e nacionalismo, para esconjurar precisamente as conotações mais malignas que a este último substantivo andam ligadas. Numa grande parte deles, assume-se que o crescimento de movimentos deste jaez resulta de um “esmagamento” do sentimento nacional por banda das instituições supranacionais e de múltiplas entidades abstractas como os mercados, mas tem a sua causa mais funda no enorme desprestígio de uma classe dirigente internacionalista e pretensamente cosmopolita, detentora de uma íntima cumplicidade com os grandes interesses transnacionais.  

A grande maioria desses analistas e comentadores está certo quando põe o acento na necessidade política e até constitucional de não desconsiderar os factores da identidade dos povos. E, mais do que isso, quando fala sobre a necessidade de valorizar positiva e activamente esses pilares identitários. Têm, aliás, razão – e é um assumido federalista que o escreve – quando detectam, em vários momentos e lugares do processo de integração europeia, uma ignorância voluntarista e pueril da força telúrica desses pilares identitários. Sem dúvida que o processo de globalização pode e deve ser corrigido em muitos dos seus desequilíbrios. Sem dúvida que o processo europeu pode e deve acomodar as imposições de maior transparência e legitimidade e uma muito mais clara repartição de esferas de actuação entre o nível europeu e o nível estatal.

4. A impostação, todavia, de que a resposta está no regresso ao velho Estado nacional oitocentista e novecentista e às suas fronteiras terrestres e aos seus limites físicos está essencialmente errada. Como dezenas de vezes aqui e noutros locais escrevi, muitos destes analistas e comentadores não deram conta de que assistimos a uma “desterritorialização” e a uma “desmaterialização” do poder. Entre a queda do muro em 1989 e o ataque às Torres Gémeas em 2001, desvaneceu-se a velha sociedade internacional exclusivamente “estatocêntrica” (Sabino Cassese), em que o Estado dispunha do monopólio da legitimidade e da coerção (Max Weber). Aqueles que assistem com um ressentido deleite e uma contida “Schadenfreude” àquilo que julgam ser o ressurgir do nacionalismo pretérito estão, creio eu, a pisar o trilho errado, a pisar trilho minado.

Um regresso a esse paradigma nacional, ou melhor dito, nacionalista, mais não seria do que entregar as comunidades nacionais, que eles tão genuinamente amam, aos apetites vorazes de um mundo de suseranias e impérios. Nem todos perceberam ainda: nunca, em nenhuma construção política antes da União Europeia, tantas identidades nacionais se afirmaram com um notável grau de autodeterminação e com um notável patamar de garantias constitucionais. As tão incensadas cinzas da União levar-nos-ão ao jugo, à vassalagem,  ao protectorado, à zona-tampão, à ocupação, à sub-cidadania. A União Europeia, clube único de democracias e da primazia do direito, tem paralelos com o último argumento de defesa da democracia: é um péssimo sistema, mas parece ser o menos mau de todos. Enfim: nada auguro de bom a um continente entregue à mercê e às mercês da Ordem das Cabeleiras Exóticas.  

 

SIM e NÃO

SIM. Nuno Crato e Paulo Macedo. Não pode haver maior elogio às políticas de educação e saúde do PSD do que os resultados da matemática do 4.º ano e a nova indicação para a Caixa. Oxalá o PSD saiba capitalizar.

NÃO. PSD e voto de pesar por Fidel. O PSD não pode abster-se num voto sobre um ditador sanguinário como Castro. Há momentos em que é preciso afirmar as raízes humanistas e democráticas. Este era um deles.

 

 

 

     

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