A ópera da contradição

Israel tem um problema de imagem e, como diz um analista, “nem o melhor relações públicas do mundo” o conseguiria resolver. A paisagem e um bom húmus não são suficientes para mudar a realidade. Mas o Governo vai tentando, e o turismo é uma das armas do seu soft power.

Fotogaleria
FINBARR O'REILLY/Reuters
Fotogaleria

Ele está sentado à porta da sua tenda, com a mulher e o filho, de uns sete anos, ao colo. Ela retira-se discretamente, mas a criança fica, em silêncio e agarrada ao pai. Ao lado desta tenda há outra e mais outra e o chão é só pedras e pó. Está de noite e a pouca iluminação eléctrica dá apenas para ver que é um homem alto e corpulento e para lhe adivinhar a expressão. Estamos literalmente no meio do deserto, o da Judeia, com montanhas a toda a volta e o Mar Morto ali em baixo. Ficasse a descrição por aqui e poderíamos pensar que temos à frente um beduíno e a sua família. Mas não. Quem está diante de nós é o maestro israelita Daniel Oren, que se prepara para, dentro de poucos minutos, dirigir a Tosca.
Aqui?
Aqui mesmo.
Uma ópera no meio do deserto?
Isto é Israel, terra de muitas contradições.

Uma ópera — que pode chegar a confundir-se com um excêntrico festival de som e luz — já nem sequer é novidade aqui. Desde 2010 que se faz este festival no sopé de Massada, um planalto onde há dois mil anos se achou por bem construir um palácio. Há três meses que 2500 pessoas estão a trabalhar intensamente para que do nada cresça um palco de 64 metros de comprimento, uma plateia de 6030 lugares, meia dúzia de camarins, tendas de bebidas — é toda uma “aldeia” de 45 mil metros quadrados. No intervalo para o II e III actos avisam que haverá tiros em palco, para ninguém se assustar porque são encenados. Se há local onde o aviso é necessário, é este.

É o sítio ideal para a Tosca?, pergunta a Oren um dos jornalistas estrangeiros convidados pelo Ministério do Turismo a vir assistir ao espectáculo. “É o sítio ideal para qualquer ópera, não só as bíblicas mas qualquer uma”, responde o director musical da Ópera de Israel. Como irão os músicos lutar contra o calor e o pó “está nas mãos de Deus”. Além disso, “esta peça tem tudo a ver com Massada”, diz.

A forma como a diva da obra de Puccini se entrega à morte para não cair nas mãos dos soldados de Scarpia, o chefe da polícia que ela acabara de matar para não ser desonrada por ele, pode ser comparada ao suicídio de 960 judeus que antes preferiram morrer a tornarem-se escravos dos soldados romanos que se preparavam para tomar a fortaleza. Uma comparação um pouco rebuscada, talvez, mas Oren não foi o único a fazê-la ultimamente.

No dia seguinte subirá ao palco uma feérica Carmina Burana, um códice de poemas do século XIII musicados por Carl Orff em 1936. O espectáculo abriu com cinco homens montados a cavalo a irromper pelo palco e foi sempre conduzido por um Indiana Jones de chapéu e casaco de cabedal porque, diz o programa, esta é “a viagem de um arqueólogo que chega ao deserto e descobre um mundo antigo, que desconhecia, tal como Orff descobriu pela primeira vez os poemas antigos que musicou”. Forçado? Muito. Mas dali a duas semanas, tudo estará como antes. Só pedras e pó. Como se nada nem ninguém tivesse passado por Massada. E para o ano há mais.

Foto
Cenário de Tosca, com o morro de Masada iluminado Yossi Zwecker

Hanna Munitz, directora da Ópera de Israel, refere numa conferência de imprensa que o país tem uma tradição de música instrumental, mas não de ópera. Este festival serve para “educar o nosso público”. E também para “mostrar [ao exterior] que temos uma vida normal, uma vida cultural. Israel também é isto, não é só [o primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu, Irão e Gaza”.

“Bem-vindos à terra da criação”, diz a seguir aos jornalistas Pini Shani, director do departamento estrangeiro do Ministério do Turismo. Shani admite que é preciso “mostrar Israel de uma nova forma” e que este é um passo para isso.

E é também através do turismo que o Governo pretende mudar a percepção que no estrangeiro existe sobre o país. A BBC realiza regularmente sondagens sobre como o mundo olha para Israel. Os resultados publicados em Julho do ano passado — e que incluíam três anos de auscultações, que começaram ainda antes da impopular campanha aérea contra Gaza em 2012, nota a estação britânica — mostram que a maioria das pessoas dos 22 países inquiridos (Portugal não consta) tem uma imagem “sobretudo negativa” de Israel. É assim em todos os países da Ásia, Europa e América do Sul que foram analisados. E é nos Estados Unidos e na África subsariana que o Estado israelita é visto com mais simpatia.

Pini Shani explica à Revista 2 os desafios que o seu Governo enfrenta para contrariar a ideia de um país sistematicamente em conflito: “Temos desvantagens, sim, mas também temos vantagens.” E enumera-as: “Jesus nasceu em Belém [no Norte de Israel] e não em Lisboa. Se andar por Jerusalém, vê a história [cristã] desde a via sacra à Igreja do Santo Sepulcro. Não é uma viagem longa para quem vem da Europa. Tem o maior spa natural do mundo [Mar Morto]. Estamos a tentar transmitir essas vantagens. Não tentamos convencer ninguém de que é um lugar seguro, isso não vale a pena.”

Do outro lado da campanha está o movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções), que quer passar para o exterior a mensagem de que tal como o boicote ao regime do apartheid na África do Sul surtiu efeitos, o mesmo poderá acontecer em Israel, relativamente às violações dos “direitos de liberdade, igualdade e autodeterminação dos palestinianos, através da limpeza étnica, colonização, discriminação racial e ocupação militar”. O movimento foi criado em 2007 por representantes de palestinianos refugiados no exílio, palestinianos em territórios ocupados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e por cidadãos do Estado israelita que se sentem discriminados por serem palestinianos.

O BDS pede um boicote “às instituições desportivas, culturais e académicas”. Não especifica aqui o turismo, mas “qualquer um pode boicotar os bens israelitas simplesmente assegurando-se de que não compra produtos fabricados em Israel ou por empresas israelitas”.

Para o representante do Ministério do Turismo, “é difícil dizer se o BDS tem impacto [na vinda de estrangeiros] ou não. Mas não acho que impeça os turistas de vir a Israel”. E se quiserem ver a realidade palestiniana, “os turistas podem viajar para a Cisjordânia, mas para Gaza não. Há uma disputa e não achamos que seja seguro. Também não há lá nada para ver”, diz Shani. Já Israel “é um destino turístico por excelência, apesar dos desafios”.

Foto
O Mar Morto é "o maior spa natural do mundo", diz Pini Shani, do Ministério do Turismo MENAHEM KAHANA/AFP

Quem chega vê um país empreendedor, com boa comida, uma paisagem deslumbrante e diversificada — tão depressa desértica como verdejante, aponta Yossi Mekerlberg, analista da Chatham House, um think tank britânico, numa conversa telefónica. “Israel projecta uma imagem de modernidade e ao mesmo tempo com uma história antiga.” O turismo é “sem dúvida” uma arma de soft power (a capacidade de influenciar de forma não bélica). Há outras: “A indústria cinematográfica, a música (de fusão com o Ocidente); uma economia muito high-tech; a academia; a literatura, que é traduzida para muitas línguas...”

Mas o outro lado da moeda é bastante mais pesado. “Israel tem um grande problema de imagem que vem da própria realidade: da ocupação, dos colonatos, do bloqueio a Gaza. Nem o melhor relações públicas do mundo conseguiria resolvê-lo. E isto é uma coisa que corrói também a sociedade israelita. Podemos passar umas férias óptimas em Israel, mas a democracia está a sofrer. A paisagem, a gastronomia, não mudam a realidade.”

E daí que, segundo o analista, as ideias do BDS — mais do que o movimento em si, “devido à linha que defende a violência” — têm vindo a acolher cada vez mais seguidores. “Há a crescente percepção na comunidade internacional que a expansão dos colonatos, a falta de vontade em dialogar, são sinais claros de que Israel não está empenhado num acordo de paz, e que por isso tem de sofrer consequências económicas — isto faz já parte do discurso na Europa e nos Estados Unidos. As medidas económicas poderão tornar Israel mais flexível e, a não ser que [o Governo israelita] faça um esforço, são agora mais prováveis, mais do que eram há cinco anos.”

De cima vê-se bem o Mar Morto, separando Israel da Jordânia — um mar que é na verdade um gigantesco lago azul-celeste, esbranquiçado por causa do sal, que se situa 400 metros abaixo do nível do mar e que a cada ano que passa está mais encolhido. E vêem-se bem desenhados, lá em baixo, os quadrados formados por pedras que delimitam o local onde os romanos se estabeleceram antes de lançar o ataque à fortificação, no ano 73.

Tudo em volta é cenário bíblico, metafórico e, em alguns casos, literalmente também. “Fez [Deus] chover sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo [vindo] do céu; e destruiu estas cidades, e todo o país em roda, todos os habitantes das cidades, e toda a verdura da terra.” A zona a que se diz corresponder às cidades castigadas pela ira divina está a poucos quilómetros de Massada. Montes que parecem templos em ruínas. Grutas onde a temperatura desce abruptamente devido ao ar que passa por paredes de sal. Um guia beduíno conta que os nómadas que ali habitavam aprenderam a ler nos animais os sinais das enchentes avassaladoras dos rios: quando coelhos e cabras escapavam para lugares mais altos e quando os burros punham as orelhas para trás, era tempo de deixar as margens até então secas e firmes.

Massada é hoje património mundial da UNESCO. Visto a dois mil anos de distância, a construção de um palácio ali parece quase uma alucinação provocada pelo calor. Mas resultou num dos mitos fundadores da identidade israelita e é agora um dos pontos de maior atracção turística do país.

Foto
Massada é hoje património mundial da UNESCO MENAHEM KAHANA/AFP

O sol está implacável e só raramente sopra uma brisa. O brasileiro António Carlos Neves caminha com um pequeno grupo de amigos. Percorre como um guia experiente as ruínas do palácio que terá sido mandado construir por Herodes e que ninguém sabe se ele alguma vez pisou. Vai apontando para o que antes eram armazéns de armas, uma sauna, aposentos para convidados... e avançando com as suas explicações. Não exageramos se dissermos que já veio a Massada umas três centenas de vezes. Poucas foram as que a viu tão vazia como agora.

Pele escura, olhos claros, cabelo quase branco e muita energia na voz, não fosse ele pastor evangélico. Procura uma sombra, um telheiro de canas no que antes era uma zona de banhos, e apresenta-se: “António Carlos Neves, 63 anos, sou brasileiro. Venho da cidade de Santos e estou aqui há 20 anos já.”

Não foi por ser judeu que decidiu vir, apesar de tanto ele como a mulher terem ascendência judaica. “O que nos fez vir para cá foi a parte bíblica desse país. A história que [aqui] é viva. É como se pudéssemos viver a Bíblia em 3D ou 4D, não é? Você cheira, sente, vive a realidade da história, comprova muita coisa que está escrita na Bíblia. Também descobre que muita coisa de que se fala é um pouquinho lenda.”

Na sua função de pastor evangélico, recebe em casa outros pastores vindos do Brasil. “Quando descobrem que vivo aqui dizem: ‘Vou para tua casa, que é mais barato!’”

Os amigos de António Carlos Neves juntam-se assim aos milhares de evangélicos que anualmente visitam Israel. Não é por acaso. O Governo tem tentado converter o amor deste grupo religioso pela Terra Sagrada em apoio político, “com alguns proponentes [desta ideia] a declarar que a diplomacia com base na fé é a arma mais poderosa do arsenal diplomático de Israel — apesar de as suas capacidades e alcance precisos ainda estarem por provar”, referia o Christian Science Monitor num artigo de Fevereiro de 2013. A revista explicava que o crescimento rápido desta congregação em países como o Brasil e a Nigéria, “que tradicionalmente não são apoiantes do Estado de Israel”, se pode converter em apoio em fóruns internacionais, como as Nações Unidas. Para isso, “o Governo israelita aposta na herança religiosa comum entre judeus e cristãos para aumentar o turismo e a posição no palco internacional”. O CSM adianta que o Governo gasta milhões de shekels para atrair pastores que depois virão com os seus rebanhos, que pelo caminho, espera, se converterão em apoiantes mais fervorosos do Estado de Israel nos seus próprios países.

Foto
Turistas cristãs refrescam-se no rio Jordão, em Qasr el-Yahud, perto de Jericó, na Cisjordânia RONEN ZVULUN/Reuters

Mas a fé nem sempre é suficiente para fazer face ao medo.

“[Quando cheguei] em 95, a quantidade de turistas era muito grande”, continua António Carlos Neves. “Viajávamos no país e havia muito mais liberdade de caminhar [a primeira Intifada, que começara em finais de 1987, acabara dois anos antes, em 1993]. A Intifada [a segunda, 2000-2005] e esses problemas religiosos realmente assustaram muito as pessoas... Toda a vez que há um conflito, a maioria dos turistas cancela o voo para cá.” Ele, pelo contrário, sente-se confortável. “Nunca corri perigo. Tenho esposa, tenho filhos, tenho netos. Estudam, trabalham, vive-se muito bem. Tem muita tranquilidade nas ruas. É muito seguro. Tirando excepcionalmente as épocas em que há conflito... Esse conflito faz parte do dia-a-dia. Convivemos bem com isso e superamos. Aconteceu, aconteceu. A vida não pára, o país não pára.”

Os números reflectem a desconfiança. Uma notícia do Jerusalem Post de 15 de Junho referia que o Turismo ainda não recuperou dos 50 dias de conflito no Verão passado — período durante o qual soavam constantemente as sirenes de alerta contra os rockets lançados a partir de Gaza (território controlado pelo grupo palestiniano Hamas), tendo mesmo chegado a haver a suspensão do tráfico aéreo quando um deles foi cair próximo do aeroporto internacional Ben-Gurion. As operações terrestres das IDF em Gaza mataram 2251 palestinianos (incluindo 1462 civis); do lado israelita morreram 67 militares e seis civis. Uma investigação da ONU publicada recentemente concluiu que ambas as forças terão então cometido crimes de guerra e apontava para níveis de destruição e sofrimento “sem precedentes”.

Também a crise na Rússia e a queda do rublo está a reflectir-se nas entradas de estrangeiros, adianta o diário. Resultado, no primeiro trimestre de 2015, o sector atingiu os níveis mais baixos dos últimos cinco anos. O centro de estatísticas israelita estima que, nesse período, os rendimentos do turismo baixaram 12% em relação ao ano anterior; as estadias de estrangeiros em hotéis decaíram 27,4% (e aumentaram 9,4% as de turistas israelitas).

Segundo o responsável do Turismo de Jerusalém Eli Nachmias, em 2014 visitaram o país 3,5 milhões de turistas estrangeiros (a maioria, 700 mil, dos EUA, seguidos pela Rússia, com 600 mil). “O presidente da Câmara de Jerusalém disse que quer 10 milhões até 2020”, afirma à Revista 2. Se o sector enfrenta dificuldades, é também por causa da crise na Europa, refere. Mas essa é “a razão leve”. A razão pesada é “a situação geopolítica: infelizmente, não somos a Suíça, que tem por vizinhos a Itália, a França e a Alemanha, países pacíficos. Os nossos vizinhos são o Iraque, a Síria, onde está o Estado Islâmico; todo o mundo árabe está a arder”.

Nachmias adianta que a estratégia do Governo é “mostrar que não há bombas a explodir nas ruas”, trazendo opinion makers, académicos, jornalistas ou organizando eventos culturais, conferências, tours para famílias, “que levam o testemunho que a realidade não é exactamente o que se vê na CNN”.

Foto
Vista de Jerusalém. A estratégia do Governo é “mostrar que não há bombas a explodir nas ruas”, AHMAD GHARABLI/AFP

Um muro cinzento divide o espaço mas apenas pela cintura. No topo estão fotografias a preto e branco do verdadeiro muro, o que separa Israel da Cisjordânia. Wall, do fotógrafo Josef Koudelka, é uma “visualização épica de um dos símbolos mais definitivos da soberania israelita e do conflito israelo-palestiniano”, lê-se na ficha que acompanha a obra exposta no Museu de Arte de Telavive (e que integra a exposição This Place, em que 12 fotógrafos estrangeiros olham para este ponto do globo). O muro dos olhos de Koudelka às vezes parece uma serpente que rompe a paisagem, outras uma barreira de betão que nada permite perscrutar, outras ainda um emaranhado de arame farpado que torna tudo mais turvo. É sempre um corte, uma ferida, uma prisão.

O muro vê-se bem a partir de vários locais de Jerusalém — locais onde os guias levam os turistas para lhes mostrar as magníficas vistas da cidade velha, reclamada como capital tanto por israelitas como palestinianos (e sagrada para judeus, muçulmanos e cristãos) e não reconhecida internacionalmente como tal em nenhum dos casos. Jerusalém está, pois, em cima desta cisão, faz parte dela, é o seu epicentro. Mas Telavive acaba por ser um bom posto de observação.

Dentro do edifício da Ópera de Israel, Neta Amit Moreau, directora de palco e responsável do programa educativo, afirma que é preciso acabar com o equívoco entre “o que é ser judeu e o que é ser israelita. Se o turismo puder ajudar, óptimo”. Voltemos ao deserto, sem sair da mesa onde estamos, neste átrio moderno e com ar condicionado: “Quem estava na orquestra a tocar? Apenas israelitas, mas todos vindos nos anos 80. Quem está à entrada a revistar a sua mala para ter a certeza de que não vai lançar uma bomba em Massada? Árabes, muçulmanos. Se ninguém nos explicar nada, não ajudará [a esclarecer]. Mas se como jornalista puder abrir esta caixa de Pandora que é Israel e ver que para além das serpentes há pessoas de todas as cores e religiões e etnias, então pode ver que não é tão simples como pode parecer visto de fora, da Europa rica e segura.” Perceber o que se passa neste país talvez não seja possível. “Se não o vivemos, não o conseguimos compreender. O Dalai Lama diz ‘sejam amáveis’. E é isso: não sabemos por que lutas as pessoas passaram, por isso devemos ser amáveis para elas. É assim que olho para os árabes à minha volta.”

A cultura pode ser uma porta. “As pessoas que vêm cá não são palestinianas, mesmo os árabes são uma minoria... Mas o papel da arte é abrir a mente. E independentemente de sermos palestinianos, de Gaza, ou israelitas, quando choramos, choramos, quando rimos, rimos. E é disso que o palco trata, de sentimentos. Talvez possamos levar esses sentimentos aos corações frios dos políticos que vêm cá com frequência.”

Não será fácil. Recentemente, a ministra do Desporto e da Cultura ameaçou retirar financiamento às instituições que “deslegitimam” Israel, levando centenas de artistas israelitas a protestar nas ruas. Antes, Miri Regev tinha ameaçado cortar o subsídio a um teatro dirigido pelo actor árabe israelita Norman Issa, em Jaffa, por este se ter recusado a participar numa performance na Cisjordânia ocupada. Neta Amit Moreau não tem dúvidas: “É nestas alturas que surge a melhor arte. O seu próximo espectáculo será o melhor. Porque quando tocamos nos nervos das pessoas...” E é mesmo com a arte que se deve responder. “[A arte] é uma forma não agressiva de levar as nossas opiniões às pessoas. Não conheço artistas muito violentos. Podem ser agressivos nas ideias que trazem ao palco, ao cinema, às suas músicas, mas não fisicamente violentos. É a única forma branda de lá chegarmos.”

Moreau garante que a Ópera de Israel tem a liberdade de apresentar o que quiser. Mas, afirma agora a um pequeno grupo de jornalistas ibéricos, há tabus que subsistem: “Não vemos Wagner em Israel, mas acabaram de ver a Carmina Burana. Bach e Carl Orff [ambos alemães] também não gostavam muito dos judeus. [Wagner é proibido] talvez por ter a sua própria teoria, escrita, e por Hitler o adorar. É uma contradição que existe desde que aqui estamos e estamos sempre a encontrar contradições destas. Se os sobreviventes do Holocausto têm um problema com Wagner, não ouvimos Wagner. É como um tabu que não se quebra. Os maestros israelitas vão a Berlim dirigir O Anel de Nibelungo, mas em Israel não o podem fazer. Podemos chamar-lhe hipocrisia, ou não querer ferir susceptibilidades, mas, como dizia a minha avó, ‘os factos estão no pudim’. [O que é certo é que] não tocamos... Está tudo tão recente. Talvez daqui a uma geração.”

Foto
Parada LGBT. Telavive tem sido promovida como um destino "gay friendly" FINBARR O'REILLY/reuters

O que não precisa de esperar uma geração é a manifestação do orgulho gay. A marcha que nos dias anteriores tinha invadido Telavive continua a respirar nas ruas. Bandeiras com o arco-íris estão espalhadas por toda a cidade, em bares, lojas de roupa, bancas de sumos. Duas raparigas beijam-se despudoradamente no meio do passeio, dois homens seguem abraçados pela rua fora, e a cena repete-se vezes e vezes sem conta e sem complexos.

Aqui não se tapam ombros nem se prolongam patilhas em canudos — ou não tanto como em Jerusalém, pelo menos. As adolescentes andam de saltos altos e saias curtas. Passeia-se junto ao mar e sente-se uma brisa de Copacabana. Se Jerusalém é cor de pedra — há mesmo uma lei que impede a construção em qualquer outro material que não seja a meleke, “a rainha das pedras” — Telavive é a “Cidade Branca”, luminosa. O centro de arquitectura Bauhaus foi declarado património da humanidade pela UNESCO e os prédios baixos são suficientemente numerosos para não nos sentirmos engolidos pelos arranha-céus.

Três brasileiros preparam-se para aterrar em Telavive: Pedro, Felipe e Nelson formam um trio que no Brasil já será reconhecido por muitos. Os vídeos humorísticos do Põe na Roda, que todas as semanas colocam no YouTube, chegam a ter um milhão de visualizações, sobretudo da comunidade homossexual. Vieram porque foi o próprio Ministério do Turismo que os convidou — faz parte da promoção do país como destino gay friendly.

E Telavive é realmente gay friendly?, perguntamos dias depois por Facebook. “Isso é inegável”, diz Pedro HMC (é pelas iniciais que é conhecido), ex-roteirista de programas de humor na MTV Brasil. “Você conversa com as pessoas na rua e sente isso. Não se sente às margens da sociedade, nem julgado ou observado, como acontece sendo gay em muitos lugares do mundo. Você vê um monte de casais gays com filhos nas ruas, drag queens, transexuais, coisas que mesmo em cidades grandes do Brasil onde ser gay é possível, não chega a ser tão normal e tranquilo quanto em Telavive.”

O grupo fez uma série de vídeos que são publicados faseadamente no canal. “Mostramos a praia gay, Hilton Beach, o Gay Center, que é um centro público de apoio à comunidade LGBT, entrevistámos gays idosos, fizemos matéria em uma festa gay num parque aquático, além de entrevistarmos a Conchita Wurst [vencedora do festival Eurovisão da Canção de 2014, que se tornou popular por ser uma transexual com barba], o que foi uma honra. A intenção é mostrarmos Telavive como um destino gay incrível para o público gay brasileiro. Nem todo o mundo sabe disso, muitos, quando pensam em Israel, pensam apenas em Jerusalém, guerras e turismo religioso.”

No centro de Jaffa, a cidade portuária colada a Telavive, está uma rapariga com uma enorme cabeleira afro, olhos sorridentes e dentes brancos. Passeia-se entre um lado e o outro da rua, conversando, fumando um cigarro. Maayan Shimomi é gerente do Puua, um restaurante que começou por ser uma loja de flores — depois a proprietária começou a servir cafés e a coisa foi expandindo. Tem uma mistura de peças de datas e estilos variados, sofás onde as pessoas se podem sentar, cadeiras e mesas vintage, loiças e naperons que podiam ter vindo de casa das avós.

“Esta é a minha Israel. Uma grande misturada que mostra o que o país poderia ser”, diz Maayam. Poderia, mas ainda não é. E se ela está aqui hoje foi porque um dia alguém disse aos seus bisavós, maternos e paternos, que havia uma nação para construir. “Vieram do Iémen [pouco depois da proclamação do Estado de Israel em 1948]. Eram judeus. Alguém lhes prometeu uma coisa e eles partiram. É assim que funciona.”Daqui, a vida até parece um lugar tranquilo. Mas se tivesse de definir resumidamente os israelitas, Maayam diria no seu inglês hesitante: “São barulhentos. Metem-se na vida das outras pessoas, para o bem e para o mal. Ou tentam ajudar ou repreendem.”

Não é preciso partilhar com ela os resultados dos estudos sobre a forma como Israel é visto fora de portas porque ela conhece-os intuitivamente. “As pessoas têm medo de vir”, afirma. “À distância tudo parece pior do que quando se está no lugar.” Aponta alguma da responsabilidade aos media, que sistematicamente mostram a parte como se fosse o todo.

O guia turístico Aviram Politi diz o mesmo — sem as críticas que Maayam lança ao Governo, que queria ver “todo mudado”. “Eu acredito, e também o Ministério do Turismo [para quem trabalha ocasionalmente], que o turismo é uma boa forma de combater o boicote e os preconceitos contra o Estado judaico. Quando as pessoas cá vêm e vêem com os seus próprios olhos, não estão a ser induzidas em erro pelos media, que infelizmente descrevem os hebraicos como másculos e os árabes como os bonzinhos, sem dar as múltiplas dimensões.”

Nas suas visitas guiadas em inglês, italiano ou hebraico, Politi não entra “no terreno minado da política, por ser uma base de conflito entre os elementos do grupo, e entre o grupo e o guia”. Mas acha que este é um debate “fácil de manipular, especialmente por europeus, que durante séculos e séculos tiveram ódio aos judeus..., culpando-os por tudo o que acontece, quer seja verdade ou não”.

Conta que a sua família, tanto do lado do pai como da mãe, são judeus sefarditas expulsos de Espanha em 1492 por causa da Inquisição. Em casa ainda falam um dialecto que mistura castelhano com hebraico — “os meus pais recebem uma revista trimestral em ladino”. No século XV, um antepassado do lado materno, da família Ginio, foi forçado a converter-se ao cristianismo; estava encarregue do Tesouro do Rei D. Fernando, e ele próprio fez a ligação entre Cristóvão Colombo e os reis de Espanha, garante. “Há documentos [emitidos por] Espanha que o comprovam.”

Alguns membros da família morreram nos campos de concentração nazi, outros instalaram-se na Grécia antes de se fixar aqui, “no único estado hebraico do mundo. Os judeus tiveram de tomar o seu futuro em mãos, porque não se pode confiar em nenhum outro país”.

Foto
Um judeu ultra-ortodoxo passa em frente da um bar em Telavive Baz Ratner/Reuters

“Em hebreu, há esta frase: ‘Não perdoamos, não esquecemos.’ Talvez o perdão venha quando o esquecimento vier também, ou vice-versa”, diz Neta Amit Moreau, da Ópera de Israel. “Quando construímos uma cultura, um Estado, assente nesta declaração... Israel está a viver uma síndrome pós-traumática. É um país pós-traumático. O que é isso de Massada? É uma loucura, não é? Tomámos como símbolo um suicídio colectivo (que ninguém sabe se é verdade ou não, mas isso não importa, o que importa é o mito). Precisamos disso? Eu gostava de ter um símbolo melhor. Não é que não seja fascinante do ponto de vista arqueológico, mas um símbolo do triunfo do espírito, em que todos acabam mortos no fim?! É isto que temos de glorificar? Talvez devêssemos mudar de história.”

A jornalista viajou a convite do Ministério do Turismo de Israel

Sugerir correcção
Ler 1 comentários