A nova desordem internacional

Precisamos novamente de um humanismo militante, que faça da liberdade, da igualdade e do respeito e dignidade do ser humano os seus instrumentos de combate à opressão e à mistificação.

«Não pode deduzir-se das teorias expostas neste trabalho [A Crise da Europa, Biblioteca Cosmos, nº31, 1942] que o homem tem de entregar-se, de braços cruzados, a um fluir fatal da história; e isto precisamente porque a vontade, a razão, a emoção, etc., são forças integradas no mecanismo da história, sem as quais mesmo o seu movimento seria impossível». Estas são as palavras magistrais com que Abel Salazar inicia o prefácio do seu justamente celebrado livrinho. Não há fatalidade em história. Nos anos 1940 a noite estendia definitivamente o seu manto sobre a ordem com a qual os europeus tinham organizado o Ocidente, as suas dependências e os seus protectorados.

Sabemos todos muito bem como a ordem da guerra fria, que se lhe seguiu, favoreceu uma hegemonia dos Estados Unidos nesta vasta região do globo. Sabemos igualmente como o complexo militar-industrial norte-americano lançou novos meios e mecanismos tecnológicos para reforçar os seus instrumentos de dominação hegemónica do primeiro mundo (o do ocidente) e para preparar a entrada no terceiro (o dos países subdesenvolvidos asiáticos e africanos, pois os latino-americanos eram já considerados como um “couto” do norte) – os transportes aéreos de massa, os computadores e as suas redes de comunicação electrónica.

O estertor da construção soviética (o segundo mundo, o dos países socialistas) acompanhado por um aparente vácuo de poder, agitou enormemente as estruturas financeiras e económicas americanas, que aí viram a autoestrada dourada para o império mundial, apelidado então de “globalização” para não ferir os ouvidos mais sensíveis. Foi o período áureo da ”liberalização”, da “desregulação” e da “privatização”, isto é, do avanço dos interesses americanos por áreas até aí inexploradas. A finança (e actividades adjacentes) “globalizou-se” resolutamente, criando um mundo próprio, altamente predador e intervindo à distância de forma decidida no dia-a-dia da vida política, económica e cultural das nações do planeta.

Nem tudo correu bem na globalização, obviamente. Numerosos países e regiões entraram no sistema-mundo capitalista capitaneado pelos norte-americanos (bem-vindos ao princípio, como fontes de recursos materiais e humanos) mas alguns deles (China, Índia,…) cedo manifestando intenções de alforria e ambições geoestratégicas de indisfarçável autonomia. A miragem do império mundial desvaneceu-se na entrada do século XXI.

A competição pela hegemonia no sistema-mundo (agora alargado) estava de novo lançada. A nova ordem não nascera e até hoje ainda não viu a luz do dia. Até a Europa, ofuscada então pelo potencial do seu enorme mercado consumidor (o maior do mundo), sonhou poder sair do jugo americano criando, a partir da comunidade económica existente, uma união política com uma moeda forte, capaz de servir de referência nos maiores negócios do globo.

Porém, bastou uma crise financeira no mercado imobiliário dos Estados Unidos para fazer descarrilar a composição europeia, conduzida com pressa em trajecto sinuoso. Sem outro projecto para o futuro, sem sequer o de participar num admirável mundo novo tecnológico, mesmo que à americana, os países europeus começaram a desconfiar uns dos outros e dos respectivos interesses. A construção europeia, produto da guerra fria, não estava prevista para os tempos ásperos da globalização. Não se conseguiu adaptar.

Há alturas assim, na história, em que as trevas parecem adensar-se e as certezas que tínhamos por adquiridas se vaporizam num ápice. Ao mesmo tempo vamos sendo impregnados por uma sensação de abulia que nos tende a fazer aceitar como inevitável, como fatal, que a democracia vá discretamente desaparecendo como princípio director das nossas sociedades. E que deixa em seu lugar as mais variadas formas de tirania e de opressão, manifestações da loucura que se apodera da condição humana, sempre que há oportunidade. Os europeus que pensem nos pesadelos do século XX, que ainda nos não deixaram.

Por este motivo não podemos deixar que tal nos volte a acontecer. Torna-se necessário compreender o que de fundamental mudou com a globalização. Em cada país, a grande clivagem social e mental é hoje aquela que existe entre os que se projectam (e o seu bem-estar futuro) no mundo globalizado, por um lado e, por outro, os que lhe resistem, por se sentirem ameaçados em termos económicos, sociais e morais, encarando como base da sua segurança a restituição das antigas fronteiras soberanas.

Afrontamento terrível, este, nos casos em que verificamos que a evolução destes dois grandes grupos os tornou de dimensão comparável (Reino Unido, Estados Unidos, França, …). É que esta clivagem rebenta com as tradicionais categorias de representação política, à esquerda e à direita. Em ambos os grupos, esquerda e direita estão incluídas. Não admira que os resultados eleitorais se tornem caóticos e que novos populistas apareçam no Ocidente, explorando as emoções mais básicas e ancestrais como a angústia e o medo. Os populistas não precisam de ser coerentes, basta estarem atentos e prometer resolver tudo aquilo que os cidadãos sentem que está mal. E que não fazem tenções de cumprir – pois querem apenas conquistar o poder -- usando (como sempre) a propaganda e a mentira, através do seu domínio das representações e das opiniões. Também não precisam de maiorias absolutas – basta-lhes um estado de excepção.

No seu último livro (Le nouveau siècle politique, Seuil, 2016) Alain Touraine explica como a sociedade industrial, dos movimentos operários e da discussão sobre o progresso, terminou e, com ela, a vivência política da concepção de reformas centradas sobre o bem-estar. A “comunicação” carreia outras problemáticas. Não nos deixemos pois encantar com os cantos das sereias do passado. Porque nunca se volta atrás no tempo. É aqui que a política, como arte de gerir a distância entre a ordem e a desordem, terá de ser reinventada, pois a democracia não pode ser posta no caixote do lixo da história, como qualquer fantasia ou delírio discricionário.

Possuímos os instrumentos evolutivos adequados para continuar a nossa vida na Terra. O quotidiano não merece ser justificado por um conjunto fétido de cadáveres em decomposição. Apenas os facínoras e os ignaros se deleitam com a violência física e mental imposta aos que se poem a jeito. Na nossa época há de facto um conflito aberto que importa equacionar. Há que escolher o lado da barricada em que nos colocamos.

Existe no entanto uma componente de bondade natural em todo o humanismo, como muito bem observaram, nos conturbados anos de 1930, Bento de Jesus Caraça (em Crepúsculo da Europa, Globo, 1933) e Thomas Mann (em Avertissement à l’Europe, Gallimard, 1937), que lhe vem da sua tolerância e da sua visão inclusiva do mundo, repudiando fanatismos e ocultismos. Mas essa característica é ambivalente, pois pode ser assimilada a “fraqueza”. Hoje, precisamos novamente de um humanismo militante, que faça da liberdade, da igualdade e do respeito e dignidade do ser humano os seus instrumentos de combate à opressão e à mistificação. Nas barricadas e em todos os sítios onde for preciso.

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