A maior crise de refugiados em África é no Sudão do Sul

A guerra rebentou e disseminou-se em Julho passado e agora surgem relatos de limpeza étnica e de um genocídio progressivo.

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Uma mãe com a sua filha no posto de registo de Imvepi, no Uganda Isaac Kasamani

Uma aldeia do Sudão do Sul, situada na fronteira com o Uganda e que costumava ser movimentada, caiu num silêncio sinistro, no meio de uma guerra que provocou a maior crise de refugiados em África.

Praticamente abandonada no final do ano passado, Oraba-Kaya está rodeada de colinas onde os rebeldes lançam ataques contra soldados leais ao Governo de Juba, a capital do Sudão do Sul.

À excepção de camiões congoleses e de alguns habitantes locais, nada atravessa a fronteira em qualquer direcção.

Um soldado fardado do Uganda, que está colocado neste posto fronteiriço muito parado, disse ao EUobserver no início de Maio que estão preparados, caso os combates entre as forças opostas transponham a fronteira. “Eles não são nossos inimigos, mas estamos preparados”, disse o soldado, apontando na direcção dos soldados do governo do Sudão do Sul, que são visíveis na aldeia, a partir do seu posto.

Mais a Sul, no Uganda, acampamentos de refugiados crescem como cogumelos, com quase um milhão de pessoas a fugir de uma guerra civil, à medida que as facções em guerra atacam indiscriminadamente civis que pertencem aos grupos pastorais Dinka e Nuer no Sudão do Sul.

Os dois grupos rivais viraram-se um contra o outro depois de o ex-vice-presidente Riek Machar (um nuer) ter sido demitido pelo presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir (um dinka) em finais de 2013.

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O Presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir Goran Tomasevic/Reuters

A Comissão Europeia está a financiar ONG e organizações internacionais de ajuda humanitária para lidar com a crise, mas a escala e a rapidez das chegadas, somada a uma seca, tem dificultado os esforços de ajuda humanitária.

As medidas da União Europeia a favor dos refugiados do Sudão do Sul fazem parte de uma tentativa mais alargada de lidar com as raízes do problema da migração de africanos para a Europa.

A guerra rebentou e disseminou-se em Julho passado e agora surgem relatos de limpeza étnica e de um genocídio progressivo.

“Estão a fazer uma guerra onde não atacam os combatentes, mas sim pessoas diferentes deles – por isso é que começaram a falar de genocídio. É uma guerra suja”, disse um responsável da ONG italiana ACAV.

O maior campo do mundo

O ódio alastrou-se pelo menos até um dos campos de refugiados, onde os dinka e os nuer são mantidos em separado, apesar de tentativas iniciais de os agrupar, devido a receios de ataques e represálias.

A grande maioria dos refugiados são mulheres e crianças e quase 250 mil pessoas acabam no campo de refugiados Bidi Bidi, que é o maior do mundo e que está situado perto da cidade de Yumbe, no Uganda.

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Campo de refugiados de Adjumani, a norte de Kampala, no Uganda

As autoridades locais do Uganda e as organizações humanitárias têm tido dificuldades em acompanhar a chegada de cerca de duas mil pessoas por dia, antes de os encaminharem para outros campos.

Entre as multidões de Bidi Bidi está Gladus, de 18 anos, que disse que os dinkas estavam a massacrar pessoas na sua aldeia, que fica no condado de Lainya, no Sudão do Sul. “Dormimos no mato durante seis meses, antes de virmos para cá”, contou ela.

Stella Yunimgba, uma refugiada de 26 anos que também trabalha para a ONG Save the Children, relatou uma história semelhante. “Os Dinkas chegam de noite, cortam pessoas e crianças e atiram-nas ao rio”, disse.

Um professor primário e refugiado de 30 anos, também do condado de Lainya, disse que havia pessoas a ser mortas com catanas. “Desta vez, eles não usam armas, usam pangas [catanas]. Não desperdiçam balas.”

Outras pessoas relatam histórias parecidas de horror num conflito cada vez mais sectário que causou a deslocação de milhões de pessoas. Também testemunharam ataques contra forças de manutenção de paz da ONU.

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Soldado do exército do Sudão do Sul Reuters

Os apoios humanitários em todo o Uganda precisam de quase mil milhões de dólares até ao fim do ano, mas os grupos de ajuda humanitária ainda só receberam 10% desse valor.

Terra grátis mas sem chuva

Uma seca contínua durante a estação das chuvas só piorou as coisas e há quem fuja do Sudão do Sul simplesmente para escapar à fome.

Mas a falta de chuva também afecta os refugiados, que praticamente não conseguem plantar comida nos pequenos terrenos de 30 por 30 metros doados pelo governo do Uganda.

O governo do Uganda mantém uma política de portas abertas aos refugiados e também dá às pessoas terrenos para cultivo. Já foram entregues mais de 60 mil quilómetros quadrados só em Bidi Bidi, com a bênção das comunidades locais, que também enfrentam a pobreza abjecta.

“A política [de refugiados] do Uganda foi sempre de os deixar entrar”, disse a jornalistas em Kampala o embaixador da UE no Uganda, Kristian Schmidt.

O grande êxodo para Bidi Bidi significa que agora as pessoas também estão a ser encaminhadas para campos mais pequenos em todo o país, numa tentativa de lidar com os fluxos migratórios.

“Bidi Bidi pode tornar-se a segunda ou terceira maior cidade do país”, disse um funcionário da UE.

No campo de Kiryandongo, no centro do Uganda, os pais são obrigados a ver as colheitas a secar lentamente e a morrer com o calor do sol abrasador, ao mesmo tempo que os filhos sofrem de malnutrição, devido ao financiamento insuficiente dos doadores internacionais a organizações como o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas.

“Continuamos com fome, continuamos a estar doentes”, disse Mary Awel Ajok, uma mãe de 34 anos que está em Kiryandongo. Os seus três filhos foram recentemente hospitalizados devido à fome.

As agências de ajuda humanitária são responsáveis por prestar serviços, apesar do financiamento insuficiente aos locais e aos refugiados, devido à incapacidade do Uganda de garantir sequer que um hospital regional tenha electricidade.

A Comissão Europeia já investiu cerca de 11 milhões de euros em Bidi Bidi este ano e está a ajudar a financiar projectos de formação na região para os habitantes locais, mas a escala do problema é demasiado vasta.

Cerca de 80% dos jovens do Uganda estão desempregados e prevê-se que a população cresça de 39 milhões para 130 milhões até 2050.

O Norte do Uganda também está assolado pelo Exército de Resistência do Senhor, um grupo de guerrilha liderado pelo evasivo Joseph Kony, que entretanto foi obrigado a esconder-se. A região está debilitada pelo legado brutal do antigo ditador do Uganda, Idi Amin, que deixou grupos inteiros da população traumatizados.

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Campo de deslocados de Abyei, da ONU Reuters

Violência de género contra as mulheres

Apesar dos contratempos, as pessoas precipitam-se para a fronteira e não tem fim à vista o conflito no Sudão do Sul, um país que se tornou independente do resto do Sudão em 2011.

Entre elas, está Mary Akjuao, que tinha caminhado durante três dias desde a sua aldeia no condado de Yei até chegar à fronteira com o Uganda.

“Os rapazes que sem uniforme tentaram violar-me, mas fui salva por um grupo de mulheres do lado do Sudão do Sul”, disse ela.

Akjuao, que fala em tom baixo, contou que se tinha escondido no mato com a avó durante mais de uma semana antes de chegar ao ponto de recolha de refugiados de Basia, na fronteira. Aí, um autocarro levou-a para o campo de Imvepi, a sul de Bidi Bidi.

Akjuao tinha testemunhado uma grávida que morreu ao dar à luz durante a viagem. O bebé também morreu, conta ela.

“A minha avó não sabe que estou aqui”, diz Akjuao antes de ficar em silêncio.

Akjuao é duplamente vítima. O abuso sexual tem um grande estigma na comunidade, o que obriga a jovem de 16 anos a viver afastada dos seus pares no campo. A agência humanitária Care toma conta de Akjuao, “para superar a vergonha da violência baseada no género”, segundo um voluntário.

Autocarros cheios de gente estarão a chegar ao campo de Imvepi, que abriu em Fevereiro – em alguns dias, de 20 em 20 minutos.

O centro de recepção está apinhado de gente, enquanto os trabalhadores humanitários os deslocam cuidadosamente num processo bem organizado de triagem médica e de registo.

“Isto é um desafio para o Uganda e nós é que temos de pagar a conta – os EUA não estão a contribuir, neste momento”, disse Gregory Brady, um americano que trabalha na Care.

A generosa política de refugiados do Uganda

Estão a aumentar os receios de que Kampala pode reconsiderar a sua política aberta e começar a recusar a entrada de refugiados, obrigando-os a procurar outras opções mais a Norte.

Em 2006, o país promulgou uma das leis de refugiados mais progressistas do mundo, que dava às pessoas o direito a trabalhar e que permitia a liberdade de movimentos.

Mas o embaixador da UE no Uganda, Kristian Schmidt, alertou que o modelo do país não é sustentável.

“Se o Uganda decidisse fechar a fronteira, para onde iam estas pessoas? É óbvio que alguns deles iriam para Norte, é óbvio que alguns iriam parar às mãos de contrabandistas e traficantes”, disse.

A sugestão de que alguns poderão tentar atravessar a Líbia e cruzar o mar até chegar a Itália parece exagerada, tendo em conta a pobreza extrema que a maioria das pessoas enfrenta.

A UE reservou cerca de 200 milhões de euros para projectos no Norte de África, para impedir pessoas de saírem da Líbia em barcos com destino à Europa.

Está a direccionar-se cada vez mais ênfase e medidas políticas para os vizinhos do Sul da Europa, com uma cimeira entre a UE e a África marcada para Novembro.

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Até agora, a UE colocou uma ênfase especial em assegurar acordos de migração abrangentes com o Mali, a Nigéria, o Níger, o Senegal e a Etiópia. Mas estes programas, lançados no ano passado, produziram poucos resultados até agora – e é improvável que haja outros acordos parecidos no futuro mais próximo.

“A segurança e a prosperidade da Europa dependem muito do que está a acontecer em África e das nossas relações com este continente”, disse um funcionário sénior da UE aos jornalistas em Bruxelas, no início do mês.

Mas o mergulho no caos deste novo país e a falta de financiamento para lidar com a crise humanitária significam que os países menos desenvolvidos, como o Uganda, é que têm de carregar a maior parte deste fardo.

“Nós [a Europa] estamos a ter dificuldades com algumas centenas de milhar de refugiados da Síria, a deslocá-los e a deixá-los entrar – e aqui está o Uganda, um país menos desenvolvido, que acolhe 1,2 milhões de pessoas”, disse Schmidt.

Exclusivo PÚBLICO/EUObserver

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