A Macedónia entrou no limiar entre crise política e conflito étnico

O Presidente da Macedónia recusou uma aliança entre o partido da coligação e os partidos da minoria albanesa. A crise, que foi desencadeada por um escândalo relacionado com escutas ilegais, não só não foi resolvida como foi aprofundada.

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Milhares de pessoas reuniram-se na capital Skopje para protestar contra a proposta de coligação entre os sociais-democratas e os albaneses Reuters/OGNEN TEOFILOVSKI

Desde 2015 que a República da Macedónia, um pequeno país de pouco mais de dois milhões de pessoas, vive num impasse político originado pela queda do Governo, devido a um escândalo de escutas ilegais. Em Dezembro do ano passado realizaram-se finalmente eleições, apoiadas pela União Europeia, Estados Unidos e NATO, para tentar pôr um ponto final na incerteza. Mas, numa reviravolta inesperada, o Presidente recusou a maioria que saiu das eleições e a crise não só se manteve como se aprofundou, e ameaça agora reacender um conflito étnico.

A Macedónia é liderada há dez anos por um mesmo Governo, a nível nacional e local. “Mas os resultados eleitorais foram sempre contestados pelos partidos da oposição, tanto macedónios e albaneses, porque não tem existido diálogo. Todas as leis propostas pelo executivo passam no Parlamento, apesar de a oposição lutar duramente contra algumas delas”, explicou ao PÚBLICO Jonuz Abdulai, professor de ciência política e administração pública na South East European University, na cidade de Tetovo, no Noroeste do país.

No início de Março, o Presidente Gjorge Ivanov recusou a solução governativa encontrada após as eleições. O VMRO-DPMNE, partido de direita nacionalista e conservadora, que liderou os destinos do país na última década, ganhou o sufrágio mas sem maioria parlamentar. Conquistou 51 deputados (para alcançar a maioria são necessários 61).

“Geringonça” com albaneses

Mas a União Social-Democrata da Macedónia (SDSM, na sigla em inglês), principal partido da oposição, que obteve 49 deputados, conseguiu negociar um acordo de coligação com alguns partidos albaneses. Desta forma, o social-democrata Zoran Zaev reclamou a maioria parlamentar necessária para formar Governo e exigiu ao Presidente que lhe concedesse o mandato de primeiro-ministro.

“De acordo com o meu juramento, não posso conceder mandato a alguém que ameaça a soberania da Macedónia”, afirmou o Presidente. Em causa está a proposta legislativa para o uso generalizado do albanês na Macedónia, transformando-o na segunda língua oficial, como pedia a coligação. Apesar dos pedidos da União Europeia e da NATO para que permitisse o desbloqueio, Ivanov recusou esta proposta de “geringonça”.

A Rússia, que tem uma política cada vez mais intervencionista na região nos Balcãs, apoiou o Presidente, acusando o Ocidente de querer criar “uma grande Albânia”.

“Ivanov não está a agir como um Presidente típico. Ele é mais como foi Medvedev na Rússia: Presidente de nome mas na realidade é controlado pelo VMRO [o seu partido]. É isto que nos revela a razão pela qual rejeitou dar o mandato ao líder da oposição Zaev”, declara o analista ouvido pelo PÚBLICO.

Se o líder da oposição fosse convidado a formar Governo, diz Ivanov, “a Constituição seria alterada e os albaneses teriam mais direitos, o que mostra a atitude racista que os dirigentes do VMRO têm tido em relação à comunidade albanesa”, realça Abdulai.

Gerou-se um grande antagonismo no discurso político, com trocas de acusações de parte a parte. Numa das primeiras reacções à decisão presidencial, Zaev acusou o Presidente de tentar realizar um “golpe de Estado”.

Nikola Gruevski, líder do VMRO-DPMNE e primeiro-ministro desde 2006, divulgou um comunicado onde oferecia apoio ao Governo de coligação desde que fosse abandonada a proposta de tornar o albanês uma das línguas oficiais da Macedónia. Só que, a acontecer, isto impediria provavelmente  o acordo de governação.

Gruevski acusava os embaixadores estrangeiros de estarem a tentar enfraquecer o país.

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Nikola Gruevski serviu como primeiro-ministro entre 2006 e 2016 Wikimedia Commons

O politólogo Jonuz Abdulai sublinha que o Presidente não está a cumprir o artigo 90 da Constituição da Macedónia: “O Presidente da República está obrigado a, no período de 20 dias desde a formação do Parlamento, conceder o mandato para formar o Governo ao candidato do partido, ou partidos, que têm a maioria no Parlamento”. As eleições realizaram-se no passado mês de Dezembro.

Escândalo das escutas

O escândalo que culminou com a queda do Governo iniciou-se em 2015. Zoran Zaev, o líder da oposição, tornou públicas escutas realizadas pelo Governo: pelo menos 670 mil gravações ilegais de conversas de mais de 20 mil números de telefone. Os documentos e gravações revelavam que o Governo vigiava ilegalmente dezenas de milhares de macedónios, incluindo juízes, jornalistas e até membros do próprio executivo, bem como diplomatas estrangeiros.

Milhares de pessoas saíram às ruas em protesto durante mais de um mês. Houve confrontos entre manifestantes e polícia.

O clima de confronto entre a oposição e o Governo vinha de trás. Após as eleições de 2014, onde Gruevski obteve a vitória, Zoran Zaev garantiu que não iria aceitar os resultados, alegando que o Governo tinha abusado dos seus poderes. O social-democrata revelou as escrutas depois de ter sido acusado de planear um golpe de Estado.

“As conversas que foram publicadas mostraram a corrupção e o crime organizado dos altos membros do Governo e também a manipulação das eleições desde 2011. Existiam ainda conversas de ministros utilizando insultos racistas e fascistas contra a comunidade albanesa e roma (cigana)”, lembra Abdulai.

O primeiro-ministro classificou o escândalo como uma tentativa de serviços de informação estrangeiros de destruir o seu partido. No entanto, a pressão da população, bem como a investigação iniciada para confirmar os crimes denunciados – que iam de fraude eleitoral ao encobrimento do homicídio de um jovem depois das eleições em 2011 – obrigaram à marcação de eleições antecipadas.

Amnistia de Ivanov

Mas o escândalo só piorou quando, em Abril do ano passado, Gjorge Ivanov decretou a amnistia dos 56 políticos e associados que estavam a ser investigados, argumentando que esses processos não teriam fim e que o país precisa de seguir em frente. O anúncio motivou duras críticas da União Europeia, e levou, novamente, milhares de pessoas para as ruas de Skopje e outras cidades, em protestos contra a decisão do Presidente.

Tanto a criação de uma unidade especial de investigação para tratar do caso como a marcação do sufrágio foi supervisionado pela embaixada dos EUA e pela UE – a Macedónia tinha pedido adesão ao bloco europeu, e foi um dos países da frente a lidar com a crise dos refugiados no Verão de 2015. Depois de dois adiamentos, a Macedónia foi a votos em Dezembro.  

A crise política deve terminar “o mais cedo possível”, diz o analista político macedónio. Isto para que “a Macedónia continue o seu caminho em direcção à NATO e à integração na União Europeia”, sublinha Abdulai. Mas as preocupações são também regionais: “É de interesse da comunidade internacional ter uns Balcãs estáveis e seguros e um novo clima de confiança entre as comunidades na Macedónia”. Até porque também existe o “risco de transformar esta crise num conflito étnico entre albaneses e macedónios”.

“Como a Macedónia está no cruzamento entre Ocidente e Leste, pode ser, por um lado, um factor para a estabilidade entre os países vizinhos. Mas, por outro, pode tornar-se um factor desestabilizador que pode envolver muitos países em seu redor”, analisa.

Uma relação difícil

A Macedónia conseguiu gerir o desmembramento da antiga Jugoslávia sem conflito armado. Mas as divergências com a minoria albanesa, que totaliza um quarto da população (segundo os últimos registos, há mais de 500 mil albaneses) culminou numa revolta em 2001 que obrigou a uma mediação da União Europeia e da NATO para evitar uma guerra civil.

Desde a criação da República da Macedónia que a minoria albanesa tenta utilizar os mecanismos constitucionais para chamar a si um papel mais significativo na política nacional. Partidos políticos que representam a minoria étnica já participaram em governos de coligação. Mas têm esbarrado na reivindicação de emendas à Constituição que conferissem à minoria o estatuto de segunda Nação titular do país, e ao albanês o estatuto de segunda língua oficial, argumentando que representam entre 30% e 40% da população, e não os cerca de 25% calculados actualmente.

Por sua vez, os macedónios dizem que os albaneses têm já direitos suficientes, suspeitando que o objectivo final destes pedidos são o fim da Macedónia como República independente e a sua unificação com a Albânia ou com o Kosovo.

Em 2001, as divergências culminaram com os ataques às forças de segurança macedónias pelo grupo armado Exército Nacional de Liberação Albanês – próximo do Exército de Libertação do Kosovo, que lutou pela separação da Sérvia. O conflito, que se alastrou por praticamente todo o país, matou centenas de pessoas de ambas as partes.

A guerra civil foi evitada com o chamado Acordo Ohrid, assinado em Agosto de 2001, onde as autoridades e o grupo armado chegaram a um entendimento de paz. Como se explica no documento, o objectivo era “promover o desenvolvimento pacífico e harmonioso da sociedade civil e respeitar a identidade étnica e o interesse de todos os cidadãos da Macedónia”.

Contudo, algumas das questões que provocaram o conflito armado, e que deveriam ter sido resolvidas com o acordo de paz, aparentam estar a regressar com a situação de incerteza e antagonismo político que se vive no país.

“A principal razão para a crise reside na Constituição e na ausência da democracia funcional, bem como nos estereótipos em relação aos albaneses na Macedónia, que são acusados por todas as coisas más que acontecem no país”, identifica Jonuz Abdulai. Por isso, diz o professor universitário, a solução pode estar “num novo acordo entre macedónios e albaneses, para criar um país com oportunidades iguais para todos os cidadãos”.

“Temos de apoiar os procuradores especiais mandatados [para investigar o caso das escutas], criar espaço para a comunicação social e jornalismo livre, continuar a cooperação com a comunidade internacional e começar a desenvolver relações com os países vizinhos”, continua Abdulai.

Entre as soluções propostas, está também “iniciar a guerra contra o crime organizado e a corrupção”, até porque “o sentimento real entre os cidadãos é que a corrupção é institucionalizada”.

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