A Itália ameaça fechar os seus portos a navios estrangeiros com mais migrantes

As migrações não são uma questão de emergência, mas um problema estrutural.

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A Itália ameaça encerrar os seus portos a barcos não italianos com migrantes socorridos no Mediterrâneo. É um ultimato delicado. Não é uma surpresa. A tragédia das migrações prossegue, embora mais silenciosa. Temos tido menos imagens de afogados lançados às praias. As acções de salvamento são mais eficazes. Mas a repetição produz banalização e a banalização indiferença.

A Europa sabe que não se trata de uma “emergência” mas de uma avalancha humana que continuará porque as causas persistem. O que cria dilemas — morais, económicos, sociais e políticos. A Europa precisa de imigrantes e tem de honrar a sua tradição de asilo, mas não pode absorver as vítimas de todas as catástrofes do mundo.

Comecemos pela notícia. Após o ano terrível de 2015, houve uma quebra no número de fugitivos à procura da Europa por terra ou a partir do Mediterrâneo Oriental. O acordo com a Turquia susteve a vaga de fugitivos sírios. Mas a rota marítima, a partir da Líbia, não se atenuou. Em 2016 houve 180 mil migrantes a chegar aos portos italianos; e pelo menos 5022 pessoas sepultadas no mar.

Entre 1 de Janeiro e 31 de Maio de 2017, chegaram à Europa, via marítima, mais 71 mil migrantes, dos quais 60.300 desembarcaram na Itália. Vêm da Nigéria, Bangladesh, Costa do Marfim, Gâmbia, Senegal... Alguns deles esperavam na Líbia há anos. Em fins de Junho, o fluxo aumentou. Só em três dias desembarcaram em Itália mais 11.500 refugiados. E, no domingo e segunda-feira, foram resgatadas mais 12 mil pessoas na costa líbia.

Ponto crítico

Roma queixa-se da falta de solidariedade e, sobretudo, da falta de visão europeia. Declara o Presidente Sergio Matarella: “A imigração é um fenómeno duradouro que não se resolve com muros. É preciso afrontá-lo com seriedade atacando os traficantes e gerindo as chegadas. E isto só a UE, no seu complexo, o pode fazer. Alguns países ainda não o compreenderam.” O problema não é fundamentalmente de Bruxelas, mas dos Estados e dos cidadãos europeus — a maior parte das competências no campo da imigração ou do asilo é dos países-membros e não da UE. Em 2015-16, houve na Europa mais de dois milhões de pedidos de asilo. Segundo os “regulamentos de Dublin”, a Itália e a Grécia, países da “primeira chegada”, deveriam assumir esta responsabilidade. E o acordo de 2015 para recolocar 160 mil refugiados da Grécia e Itália foi recusado por vários países.

A Itália é o país mais exposto. Malta rejeita os pedidos de desembarque. A Espanha defende-se com acordos com países do Magreb e aprendeu a “blindar” as Canárias e as cidades de Ceuta e Mellila. A França aplica à letra as normas de Dublin. A Itália apela à necessidade de intervenção nos países de origem dos embarques e na repressão do tráfico, o que não é realizável por um só Estado. “Internacionalizámos as operações de salvamento mas o acolhimento continua a pertencer a um único país”, resume o primeiro-ministro Paolo Gentiloni.

Para Roma, a proibição de acolhimento de navios de bandeira estrangeira é um meio de dissuasão para forçar uma acção conjunta. Na Itália, cuja população manifestou liberalidade em relação aos refugiados, a situação ameaça tornar-se insustentável. A extrema-direita apela à “revolta popular” contra “a invasão”. É um excesso retórico mas não deixa de preocupar o Governo. Daí o ultimato italiano.

Dilemas

O leitor terá reparado que uso nomes sem critério: migrantes, imigrantes, refugiados, fugitivos. Migrante é uma designação genérica e imprecisa onde cabem imigrantes económicos que fogem às fomes e fugitivos de guerras, perseguições e tortura, à procura de um asilo. Refugiado é um termo mais preciso, com valor jurídico, pois habilita ao direito de asilo. Como distinguir todas as situações? Por onde passa o risco divisório?

A partir de 2006 aumentou o número de conflitos violentos. A Síria e certas regiões de África são casos paradigmáticos. “A consequência foi o aumento dos fugitivos, dos refugiados, das destruições e tudo o resto”, dizia há tempos um responsável da Cáritas. E tão grave como as guerras é a implosão de Estados.

Daí o “tsunami de deserdados”. Os fluxos migratórios da África para a Europa não são uma questão de “emergência”, são um problema estrutural potenciado pelo desespero: os fugitivos dizem-se dispostos a morrer para alcançar a Europa.

Falta de visão, acusa o ministro do Interior, Marco Minniti: “[A imigração] não é uma questão de debate político quotidiano. Só pode ser afrontada com um desígnio global e uma coisa é certa: está em jogo uma parte fundamental da nossa democracia, está em jogo a Europa. Nos próximos 20 anos, a Europa joga em África o seu destino. [A África] será cada vez mais o espelho da Europa e não só da Itália.”

A Europa parte-se em termos morais e políticos. Há o dever universalista de acolher todos os refugiados, ponto de vista da Igreja Católica e da maioria das ONG, ou é mais sensato impor uma selecção dos fluxos migratórios? Onde deixam os refugiados de ser um “fardo” para ser um “investimento”? Ao abrir as portas aos refugiados em Agosto de 2015, Angela Merkel fez uma jogada política ousada a pensar no longo prazo. Mas criou a ilusão de um acolhimento universal, o que fez crescer a vaga migrante forçando-a depois a travar as expectativas. Mas não abdicou da sua política.

Os que defendem o ponto de vista da selecção lembram os riscos de ruptura dos sistemas de segurança social e o efeito boomerang da xenofobia estimulado pela extrema-direita. No entanto, para seleccionar, é preciso gerir o fenómeno a partir das origens — e, neste caso, para a Itália a prioridade chama-se Líbia. Sem acção europeia conjunta, o debate será submerso pela incontrolável avalancha de refugiados, no meio de explosões xenófobas e da ilusão de aferrolhar as fronteiras, com ou sem “muros”. O encerramento apenas faz crescer a legião dos clandestinos e o poder dos traficantes.

Escreveu a analista Marta Dassù, antiga secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros: “Se o fenómeno é estrutural, a pressão migratória continuará com números sem precedentes. E não creio que possa haver uma resposta puramente humanitária (uma Europa aberta, capaz de absorver crescentes fluxos, quanto mais não seja por razões políticas), nem uma resposta puramente ‘securitária’ (uma Europa fechada capaz de devolver os migrantes ao ponto de partida).”

Estas linhas foram escritas há dois anos. De lá para cá, pouco mudou.

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