A invenção de um Macron israelita ou a “espantosa vitória” de Avi Gabbay

Um desconhecido conquista a liderança do Partido Trabalhista de Israel.

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Nasceu um “Macron israelita”? A imprensa hebraica continua a falar na “espantosa vitória” e no “feito sem precedentes” de Avi Gabbay, até há poucos meses um desconhecido da opinião pública. “Gabbay quê?”, perguntava-se no fim de Dezembro, quando ele anunciou que ia disputar a liderança do Partido Trabalhista (Labor). Na segunda-feira venceu as primárias. Na segunda volta derrotou o favorito, Amir Peretz, antigo chefe do Labor e da poderosa federação sindical Histadrut, além de ex-ministro da Defesa. Na primeira volta, tinham sido eliminados Yitzhak Herzog, líder do partido, e o grande empresário Erel Margalit.

Lembre-se que o Labor não conquistou o poder e que Gabbay apenas conquistou a liderança de um partido em risco de extinção. No diário Haaretz, o editorialista Yossi Verter resumiu num título de duas linhas o significado simbólico do acontecimento: “Com a eleição de Avi Gabbay, o Labor prova que há vida antes da morte.” É um ponto de viragem. Se Gabbay não conseguir fazer renascer o Labor, ninguém o conseguirá.

No Yedioth Aharonoth, o colunista Nahum Barnea, o mais rigoroso e sóbrio dos comentadores israelitas, não resistiu a fazer a comparação com Macron. “A mesma aversão perante o sistema político e pelos veteranos políticos, a mesma busca de algo de novo, de algo de menos gasto e menos familiar empurrou Avi Gabbay para a cabeça do Labor. Gabbay é o novo Macron.” Explicara, antes da votação, que a vantagem de Peretz era a sua imensa experiência política. Mas era também a sua fraqueza. “Gabbay é o espelho da imagem de Peretz: novo, fresco e inexperiente. Peretz é notícia requentada. Gabbay é notícia fresca.”

As analogias

A generalidade da imprensa israelita, americana e europeia glosou até à exaustão o “factor Macron”. Trata-se de procurar um novo “paradigma”, em que o descrédito da política favorece o outsider e, sobretudo, em que a resposta ao “cansaço cidadão” não vem apenas dos populismos. Se há analogias, há também uma grande diferença. Macron foi eleito Presidente de um Estado. Gabbay apenas foi eleito líder de um partido e está ainda muito longe do poder.

A colunista Sima Kadmon assinou, também no Yedioth, um perfil intitulado “Avi Gabbay, o homem que vem de parte nenhuma”. O Labor, o partido que construiu o Israel clássico, é hoje uma força em declínio. “Então chegou Gabbay”, um homem sem passado político. “Estavam desesperados à procura de qualquer coisa nova [...]. Escolher Gabbay é a maneira de escolher a vida. O Labor escolheu o novo, o desconhecido, a aventura.”

Gabbay tinha dito que a vitória de qualquer dos seus concorrentes mereceria uma notícia na página 7 dos jornais, enquanto o seu triunfo faria manchetes. Explica Kadmon: “Ele queria dizer que se fosse eleito tal seria visto como uma revolução, uma viragem. E tinha razão.” É carismático e um outsider, diz o politólogo Abraham Diskin. “E, tal como Macron, traz esperança.”

Quem é?

Avi Gabbay, 50 anos, é filho de imigrantes marroquinos. Estudos brilhantes, carreira de alto funcionário e, por fim, de gestor. Como CEO da maior empresa de telecomunicações de Israel, a Bezek, tornou-se milionário. Em 2013 decidiu mudar de vida. Moshe Kahlon, um dissidente do Likud, convidou-o para fundar um novo partido, o Kulanu. Este entra na coligação do Likud após as eleições de 2015. Gabbay, que não fora eleito deputado, tornou-se ministro do Ambiente e ganhou prestígio mas permaneceu no anonimato político. Em Maio de 2016, o ministro da Defesa, Moshe Yallon, é substituído pelo “ultra” Avigdor Lieberman. O motivo foi o crime de um sargento que abateu a frio um atacante palestiniano ferido.

Gabbai solidariza-se com Yallon e abandona o governo e o partido. Afirma depois numa entrevista que quer aderir ao Labor e candidatar-se à sua liderança. Em fins de Dezembro, formaliza esta decisão. É bem acolhido, mas não o levam a sério. A candidatura de um homem sem experiência política e que nunca fora membro do partido foi considerada um desplante.

A quadratura do círculo

Depois de eleito, Gabbay fez uma única promessa: derrubar Netanyahu. Mudar o “sistema Bibi”, envolto numa teia de corrupção. Sobre a questão palestiniana disse partilhar da visão de Rabin. Defendeu um Estado palestiniano com capital em Jerusalém (ou nos arredores). Mas a sua mensagem foi essencialmente social e económica, num tom centrista.

Como não é deputado, não pode chefiar a oposição no Knesset, tarefa que delegou em Herzog. Quer reconstruir o Labor e fazer regressar os militantes perdidos. Após a sua vitória, o Labor subiu nas sondagens, passando a ser o segundo partido, atrás do Likud, de Bibi. De momento, quem mais o teme são os partidos centristas, que captaram parte do voto trabalhista. É o caso do Kulanu e sobretudo do Yesh Atid, de Yair Lapid.

Tendemos a centrar todas as atenções no conflito israelo-palestiniano. Mas sem uma mudança do tabuleiro político israelita nada acontecerá. O statu quo — com mais colonatos e mais simulacros de negociação — manter-se-á. A mudança poderia passar por uma reinvenção do Labor.

Gabbay sabe, ou depressa aprenderá, que o Labor é um “cemitério de elefantes” onde se sucedem os líderes falhados. Lapid disse não o temer, porque depressa será devorado pelos concorrentes. Ao contrário, o politólogo Gideon Rahat acredita que Gabbay tem meios para refundar o Labor. “A política israelita é altamente personalizada. A personalidade e o carácter de Gabbay são grandes trunfos. E talvez o mais significativo seja ele ser um mizrahi [judeu oriental ou sefardita]. Poderá ser capaz de captar votos não apenas a Lapid mas também a Kahlon e Netanyahu.”

Espera-o, se tiver êxito, a mais dura das provas: a do sistema político israelita, marcado por uma pulverização partidária que reflecte o estilhaçamento social de Israel e que impõe a incessante necessidade de negociar com amigos e inimigos. É uma cultura de alianças ad hoc e de cisões, em que o que mais conta é a sobrevivência.

O problema não é táctico, é sistémico, são as regras do jogo, avisa o historiador Danny Orbach. “Ganhar eleições é a quadratura do círculo.” Mas isso é outra história.

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