A “infame obscenidade”

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Na segunda-feira, Beppe Grillo colocou no seu blogue um post intitulado “Se questo è un Paese”. É uma “adaptação” de Se Questo è un uomo (Se isto É Um Homem), título do terrífico testemunho de Primo Levi sobre Auschwitz e a Shoah. A ilustrar, vem a imagem em cima: Grillo “retoca” a ominosa inscrição na porta dos campos, Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta), transmutada em P2 Macht Frei. P2 foi uma loja maçónica italiana associada à máfia e ao terrorismo nos anos 1970-80. Arbeit Macht Frei simboliza a memória do extermínio.

A seguir, Grillo manipula o poema Se questo è un uomo com que Levi abre o seu livro: “Vós que viveis seguros / nas vossas casas confortáveis / vós que encontrais ao chegar à noite / comida quente e faces amigas: / Considerai se isto é um homem / o que trabalha na lama / o que não conhece paz / o que se bate por um naco de pão / o que morre por um sim ou por um não (...).”

Grillo ajusta o poema à propaganda. Pergunta-se: a Itália “que trabalha na lama” vive num campo de extermínio ou Auschwitz foi, afinal, como a Itália de hoje? Reagiu Renzo Gattegna, presidente da Comunidade Hebraica Italiana: “É uma infame obscenidade sobre a qual não nos podemos calar. Trata-se de uma profanação criminosa do valor da memória e da recordação de milhões de vítimas, que ofende a Itália inteira.”

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Fotografia manipulada que esta semana acompanhou um post de Beppe Grillo no seu blogue DR

Grillo tem antecedentes de ditos anti-semitas ou negacionistas, na linha da sua admiração pelo saudoso Ahmadinejad, do Irão. Observa o analista Stefano Folli: “Na sua mensagem, o eco dos antigos complots pluto-judaico-maçónicos não desapareceu, embora declinado numa forma moderna.”

Os alvos da “provocação” são o Presidente Giorgio Napolitano, Silvio Berlusconi e, acima de tudo, o primeiro-ministro Matteo Renzi — o principal obstáculo que Grillo enfrenta no desígnio de ganhar as eleições europeias de 25 de Maio. Insinua que todos são os cúmplices da “máfia com que [os italianos] estão em luta por meio pão e que fazem evadir centenas de milhões (...)”. O momento foi oportunista: fazer escândalo para impedir que os media se centrassem em Renzi, que nesse dia nomeou os novos gestores públicos.

“Em geral, os palhaços fazem rir, este faz horror”, diz uma deputada. Até às legislativas de 2013, Grillo era um comediante, um cómico, um palhaço a quem tudo era perdoado por ser um “provocador”, mesmo quando as provocações ultrapassavam as “linhas vermelhas”. Desde então é um político, chefe de um dos maiores partidos italianos.

No início da campanha eleitoral, Grillo envia a mensagem de que “isto é uma guerra em que vale tudo”. Vai subir o tom para se tornar o centro da campanha e, também, para seduzir os “desiludidos de Berlusconi”. Pode ser desespero. E pode ser pior: ele pensa que não perde votos com estas tiradas, de outro modo não o faria, avisa o historiador Mauro Barberis.

Falta mais de um mês para as europeias. Renzi está em vantagem. Mas há um altíssimo número de indecisos e de zangados com a Europa. É perigoso fazer previsões.

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