A guerra da Cultura nas guerras do Brasil

Trinta anos depois do histórico Diretas Já!, a exigência repete-se. E a cultura volta a agitar-se, dividida.

Há três décadas, a cultura foi essencial para acelerar a queda da ditadura brasileira, uma ditadura militar, e abriu caminho à democracia. O movimento Diretas Já!, feito à custa de inúmeras manifestações públicas (que ficaram conhecidas como “passeatas”), acabou por trazer às ruas do Brasil inteiro, em várias cidades, milhares de pessoas, e a sua insistência nos anos 1983-1984 conduziu à histórica eleição directa de um Presidente da República no Brasil, Tancredo Neves, que, hospitalizado, acabou por morrer sem tomar posse. No movimento, para além de vários políticos que pugnavam pela democracia, entre os quais os futuros presidentes do Brasil Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, participaram vários nomes ligados às artes como Christiane Torloni, Mário Lago, Chico Buarque, Fafá de Belém, Gianfrancesco Guarnieri, Martinho da Vila, Osmar Santos ou Juca Kfouri.

Agora, o antigo slogan repete-se, mas num quadro bem distinto: alguns dos libertadores da época estão a braços com a justiça, um governo foi eleito foi substituído no meio de votações tumultuosas por outro de duração passageira, a Presidente do Brasil foi afastada do cargo durante seis meses para responder a acusações e ser julgada por elas, e aquilo que no passado fazia a quase unanimidade entre a esmagadora maioria dos artistas, a luta pela liberdade contra a ditadura, é hoje palco de fortes divisões. Só para se ter uma ideia, nas vésperas da votação da impugnação de Dilma Rousseff no Congresso, o site Notícias ao Minuto alinhava os pró e os contra o impeachment entre figuras das artes. Entre os pró, estavam Regina Duarte, Susana Vieira, Marcelo Serrado, Humberto Martins, Dudu Azevedo, Juliana Paes, Lobão, Paulo Ricardo, Wanessa Camargo, Roger, Viviane Araújo ou Evandro Mesquita; na lista dos que se opunham estavam Betty Faria, Camila Pitanga, Ziraldo, Wagner Moura, Caetano Veloso, Criolo, Elza Soares, Gregorio Duvivier, Juca Kfouri, Beth Carvalho, Mart'nália, Chico Buarque, Chico César ou Tiê. A estes nomes, podiam juntar-se centenas, numa lista ou noutra. E mesmo os que alinham num dos lados podem fazê-lo por razões idênticas às dos que alinham no outro. O que divide o Brasil divide também as gentes da cultura, e mesmo o Diretas Já!, que se ouve no Brasil e se ouviu esta sexta-feira numa sessão também com artistas em Lisboa, onde estiveram vozes pró-Dilma ou pró-PT mas sobretudo muita gente que exige sobretudo uma clarificação e um separar das águas entre corrupção e política, é sobretudo um grito de “chega”. Dilma e o PT não terão as mãos limpas, mas Temer e o seu governo também têm cadastro sujo.

A par disso, há as guerras na própria Cultura: a supressão do Ministério, a nomeação de um secretário para a pasta (um homem, depois de várias mulheres terem rejeitado o convite) e um movimento de ocupação de antigas instalações ministeriais, exigindo não apenas o regresso do Ministério mas também a demissão de Temer. É, apesar de tudo, um movimento mais débil. E as guerras de outros tempos soam estranhas nos dias de hoje.

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