A geringonça europeia

Se a saída de Portugal da União Europeia muito se aparenta com um conto de Poe, ser europeísta por clubismo e sem espaço para a crítica não é, também, solução.

Pergunta: será que se pode dizer que desde a integração de Portugal na CEE e até aos dias de hoje (passando pela adoção da moeda única), o funcionamento da União Europeia se tornou de tal modo complexo, que apenas os mais atentos e (in)formados estarão em posição de verdadeiramente compreender todas as peças do xadrez europeu e as regras por que aquelas se movem?

Resposta: poder, pode, mas estaríamos bem longe da realidade. Na verdade, nem mesmo os mais argutos podem afiançar compreender integral e inequivocamente o funcionamento da União.

Explicando:

Para além das conhecidas (e institucionalmente reconhecidas) peças que se multiplicam no tabuleiro orgânico da União, paira sobre (quase) todas elas (e certamente sobre todos nós) uma entidade que não é rei, nem rainha, não é bispo, nem cavalo, não é torre, nem peão. Sabemos como se chama e temos (mais ou menos) uma ideia do que vai fazendo. Mas não sabemos bem o que é. Não é instituição, nem é órgão, mas também não é mero fórum informal dos ministros das finanças dos Estados-Membros da zona euro (como a leitura do Tratado de Lisboa poderia fazer adivinhar).

Entre o reconhecimento da sua existência no Tratado de Lisboa e a ausência de estatuto ou regras que pautem o seu funcionamento, atribuições e, mais curioso (ou não), responsabilização, o Eurogrupo é, em sentido próprio, uma verdadeira “geringonça”.

Não deixa de ser castiço que nas entranhas daquele que será o maior bastião mundial da democracia, brote, como um dos seus mais poderosos stakeholders (e até por contraste com a crescente burocracia que pauta o funcionamento da União), uma engenhoca que tenha a reger a sua atuação apenas um artigo (137º) no Tratado de Lisboa e um protocolo que tem mais considerandos (3) do que normas reguladoras (2 artigos).

E se, por um lado, é claro para muitos que esta maquineta não tem regras de tráfego estabelecidas, a crítica séria à sua circulação pouco se tem visto – pelo menos por cá. Como em outros temas da nossa vida pública, reina a bipolaridade opinativa – é esse o panorama atual do nosso querido Portugal político: se aqueles que são contra a pertença de Portugal à (ou até existência da) União Europeia, pudessem ver-se livres dela em troca da falanginha do mindinho da mão esquerda, ofereceriam a mão direita como brinde; já os que se dizem a favor do projeto europeu, gritam quanto podem que são mais europeístas que o vizinho – ou que pelo menos o são há mais tempo – sem se deterem na mais importante ferramenta para a sua construção: a crítica séria.

Se a saída de Portugal da União Europeia muito se aparenta com um conto de Poe, ser europeísta por clubismo e sem espaço para a crítica não é, também, solução.

Ser verdadeiramente europeísta deverá necessariamente passar por ser um construtor lúcido e crítico desse projeto, pugnando contra as suas (variadas) imperfeições, (muitas) incongruências e (ainda e mais) insuficiências.

A lista de críticas será extensa, mas a clarificação da natureza e papel do Eurogrupo, a regulamentação (séria) das suas atribuições efetivas, bem como a forma como estas se deverão articular com aquelas das verdadeiras instituições europeias e, não é demais sublinhar, dos mecanismos de responsabilização deste verdadeiro OVNI, com nome, mas sem natureza jurídica, deveria estar no topo dessa lista.

No meio de tantos temas quentes (e alguns realmente importantes), perguntar-se-á: será este um debate essencial? Olhando para o manancial crescente de notícias que começam por “Eurogrupo determina que...” e incluem o substantivo próprio “Portugal”, dir-se-á: xeque ao rei.

Advogado, associado Sénior de PLMJ Financeiro e Bancário

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