A gangrena e o direito de saber

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A publicação do relatório sobre a tortura, da Comissão de Espionagem do Senado americano, não foi apenas um acto de coragem mas de clarividência política. A presidente da comissão, Dianne Feinstein, 80 anos, não é uma moralista. Militante da “boa espionagem”, apoiou sem reservas a National Security Agence (NSA) no caso Snowden. Perante as acusações de “irresponsabilidade” — e até de pôr em risco vidas americanas num contexto de guerra —, ela usou um argumento: “Os americanos têm o direito de saber.”

Ao longo de 2005, uma campanha para a proibição da tortura em todas as circunstâncias, “dentro e fora da América”, foi liderada pelo senador republicano John McCain, ele próprio vítima de tortura quando foi prisioneiro no Vietname. Não chorava “a perda da vida de nenhum terrorista”, pensava na América. “Para prevalecer nesta guerra, precisamos de algo mais do que vitórias no terreno. É uma guerra de ideias, uma luta para impor a liberdade perante o terror (...). O abuso dos prisioneiros é para nós uma terrível temeridade nesta guerra de ideias. (...) Eles podem ser extremistas islâmicos que recorrem ao terror para nos aniquilar. Mas, para os derrotar, temos também de prevalecer na defesa dos valores políticos americanos” (Newsweek, 21 Novembro de 2005). De resto, McCain punha em causa a qualidade dessa informação. Mais eficaz seria a infiltração dos inimigos.

A luta antiterrorista pode exigir leis e procedimentos de excepção mas falha se não mantiver uma rigorosa “fronteira moral” — entre a lógica do terror e os valores das sociedades livres. Das guerras coloniais à era do “terrorismo global”, a tortura é sempre justificada em nome da eficácia e da segurança. Argumentava Stephen Hadley, conselheiro de Segurança Nacional de George W. Bush: “O Presidente disse que vamos sempre agir de acordo com a lei. Mas reparem no dilema. Que aconteceria se, no dia 7 de Setembro de 2001, tivéssemos apanhado um dos assaltantes dos aviões e com base na informação colhida com esta detenção, durante quatro dias, tivéssemos sabido que iria haver um devastador ataque nos Estados Unidos?” Ou seja, se a tortura de um preso pudesse ter evitado o massacre de 2000 inocentes, quem ousaria recusá-la?

Este dilema é extremamente eficaz como forma de “terrorismo moral” para obter uma “excepção moral”. Mas assenta numa falácia: não permite argumentação lógica nem moral. Por que não foi preso nenhum terrorista do dia 7 de Setembro? Porque não havia pistas ou a CIA falhou. Segunda falácia: a CIA torturou muito mais para desmantelar, a prazo, as redes da Al-Qaeda de que para prevenir atentados concretos.

É a tortura eficaz? Pode ser a curto prazo. Mas tem um defeito: serve também para “lavar” os crimes do terrorismo ao estabelecer uma equiparação moral entra as duas partes. Abu Ghraib e Guantánamo contribuíram para a erosão da legitimidade da luta antiterrorista, em benefício da Al-Qaeda, produzindo um efeito de boomerang contra os Estados Unidos. A “eficácia táctica” pode redundar em “perda estratégica”.

Produzirá este relatório “efeitos perversos”? Ignoro-o — escrevo na terça-feira. O que conta é outra coisa. Do ponto de vista moral, a tortura tem um terrível potencial de corrupção para as sociedades livres. Não se limita a fazer sofrer um prisioneiro. Num homem profundamente torturado, há sempre algo que morre. Simbolicamente, é uma forma de assassínio. Por isso desumaniza também o torcionário. Faz dele um ser “moralmente aleijado”: não pelo sadismo — o torcionário deve ser um “técnico neutro” —, mas pela habituação e pela indiferença ao mal. Por isso produz gangrena.

A senadora Feinstein poderá invocar um velho aforismo de Santayana: “Aqueles que não fazem luz sobre o seu passado estão condenados a repetir os seus erros.” 

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Entrada do edifício da CIA em McLean, na Virginia SAUL LOEB/AFP

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