A França, coração da Europa

Mais do que de qualquer outro país, o futuro da União Europeia está essencialmente nas mãos da França.

Com a vitória de Emmanuel Macron, a Europa pode respirar de alívio, mas não ficar descansada. Houve demasiadas e inesperadas surpresas na primeira volta das eleições que impedem que se veja agora com clareza qual vai ser o futuro da França, se terá ou não a estabilidade política que precisa para se reformar, reencontrar a sua posição na União Europeia e afastar definitivamente o perigo da extrema-direita conseguir daqui a cinco anos a eleição que agora lhe escapou.

A presença na segunda volta das eleições de dois candidatos fora do sistema político tradicional vai ter consequências na reconfiguração dos partidos, que terão de se reinventar para as eleições legislativas, o Partido Socialista eventualmente com mais esforço que Os Republicanos.

Apesar da clareza do resultado, de 66,1% contra 33,9%, nada do que agora parece realmente é. Macron tem um movimento, mas falta-lhe um partido e o enraizamento no terreno. E de modo algum tem a garantia de obter uma maioria na Assembleia Nacional nas próximas eleições legislativas, marcadas para 18 de Junho, visto que mais de dois terços dos seus votos foram contra Le Pen. Esta, por sua vez, teve uns assustadores 11 milhões de votos, mas nada garante que continuará a sua trajetória ascendente. O candidato socialista eleito em primárias Benoît Hamon teve uns miseráveis 6,5% dos votos, mas isso não significa que o PS esteja morto. Além de tudo isto, a abstenção foi muito elevada, o que deixa margem para que os resultados das eleições legislativas sejam bem diferentes daqueles que agora os diferentes candidatos tiveram nas duas voltas.

Seja como for, está a operar-se em França uma profunda transformação geracional e de valores que demonstram que o país das luzes é o verdeiro coração da Europa, o seu laboratório político, de onde nasce a inspiração e se apontam caminhos para as nossas sociedades, para o bem e para o mal. A França continua a ser o país das revoluções, da devoção gaulista pela pátria e da vocação europeia de Mitterrand.

Os resultados da primeira volta das eleições revelam uma França profundamente dividida entre uma pulsão extremista que junta 45% dos votos de Le Pen, Mélenchon e Dupont-Aignan e os cerca de 50% de Macron, d’Os Republicanos e do PS. E estes resultados são um retrato fiel da malaise que tomou conta da França nos últimos anos, que tem dificuldade em se rever na sua grandeur, que sempre afirmou com fleuma e orgulho.

Do ponto de vista ideológico, Macron é um pragmático que se colocou acima dos partidos, criando uma terceira via social-liberal que se reivindica da herança de Mitterrand, por mais que muitos insistam em dizer que ele é apenas o representante da finança, a origem de todos os males que nos atingem. Perante a malaise que vive a sociedade francesa relativamente à classe política, teve o desassombro de saltar da carruagem socialista conduzida por François Hollande e a coragem de defender alguma austeridade para o setor público, que tem uma estrutura administrativa e laboral pesada e uma classe política enfeudada em privilégios. Teve o grande mérito de, numa altura em que todos atacam a Europa, a defender como um projeto humanista e aberto que deve ser aprofundado e reformado, mas não eliminado.

Mas a vitória de Macron e a estrondosa derrota de Hamon são para o PS francês um profundo trauma. Embora alguns comentadores deem como certo o desaparecimento do PS, não é de todo plausível que assim seja, visto os seus valores estarem profundamente enraizados na sociedade e constituírem um património valioso da luta e desenvolvimento da França e das suas conquistas económicas e sociais.

Mas, para isso, é certo que terá agora de fazer um esforço gigantesco para se reerguer, o que só conseguirá se uma certa pulsão autodestrutiva for eliminada, ultrapassando as várias forças ideológicas centrípetas que existem no seu interior e assim surgir perante os franceses coeso, unido e fator de estabilidade política.

O resultado das legislativas será determinante para o futuro político da França e da Europa. Se Macron não conseguir uma maioria, o que é bem provável, não lhe restarão muitas alternativas a não ser negociar pontualmente com os socialistas ou com Os Republicanos. Embora esta solução não seja de todo evidente, a França poderá assim adotar um modelo idêntico ao português, com o PSF ou Os Republicanos a serem o garante na Assembleia Nacional da governabilidade do país. Se isto não acontecer, ficará aberto o caminho para a Frente Nacional conseguir o mandato que agora escapou a Le Pen, uma vez que à instabilidade se somará a incapacidade para a esquerda e a direita conseguirem recuperar dos anos de desencanto e desconfiança em relação à política e aos partidos políticos.

Se a França conseguir recuperar das dificuldades económicas, sociais e de identidade por que tem passado nos últimos anos, também os extremistas perderão terreno. E será não apenas a oportunidade, talvez a última, para a França recuperar do seu desencanto, mas também para a União Europeia da péssima gestão das crises que a levou a um afastamento perigoso e sem precedentes dos cidadãos europeus, o que exige claramente também uma mudança de atitude da Alemanha. Mais do que de qualquer outro país, o futuro da União Europeia está essencialmente nas mãos da França.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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