A força do populismo “é fundamentalmente económica”

A França de Juppé será mais parecida com a Alemanha de Merkel em matéria de austeridade, mais distante dos Estados Unidos e mais próxima da Rússia. Para o seu conselheiro Benoist Apparu, combate-se Marine Le Pen com a economia.

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A política externa de François Hollande não levanta grandes objecções a Juppé, excepto na questão da Rússia REGIS DUVIGNAU/REUTERS

Benoist Apparu é um dos braços direitos de Alain Juppé, o candidato presidencial ao Eliseu que está no cimo de todas as sondagens. Já foi ministro e tem uma longa carreira no partido de centro-direita sempre feita próximo do antigo primeiro-ministro de Chirac. Insiste que não é a questão da identidade nem a imigração, mas sim a economia, que dá força a Marine Le Pen.

Como é que um Presidente da V República consegue atingir os níveis baixíssimos de aprovação [de François Hollande]?
Há um momento fundador do fracasso do Presidente Hollande a que podemos chamar, a palavra é um pouco forte, a sua mentira inicial. É o ponto de partida que assegurou o seu fracasso. Numa palavra, a distinção muito francesa entre a conquista eleitoral e o exercício do poder. Separamos totalmente os dois.

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Benoist Apparu é um dos braços direitos de Alain Juppé DR

Hollande não foi o único a fazê-lo.
Toda a gente o fez desde há 30 anos. Não conheço muito bem a realidade portuguesa, mas em França os nossos políticos fazem um programa para ganhar e depois logo se vê. E esta distinção tornou-se de tal forma insuportável que as pessoas começam a não a aceitar. Foi eleito em Maio [2012] e em Setembro acabou. Presidiu três meses. Quando juntamos a isto a impreparação e a inexperiência… Nem o Presidente, nem o primeiro-ministro nem a grande maioria dos ministros conheciam o exercício do poder.

Mas há outras coisas que correm mal. Por exemplo, o livro que acaba de sair.
Sim, o disparate do livro. Este livro que, se calhar foi inicialmente encarado por Hollande como uma operação de comunicação, mas que caiu no PS como uma bofetada.

No PS e em muitas outras instituições. A justiça, os serviços secretos…
O que é mais duro para os socialistas é essa ideia de que François Hollande teve 135 conversas com os dois jornalistas, [do Monde], uns quinze jantares, não passou metade desse tempo, por exemplo, com os sindicatos. Há alguns dias encontrei os líderes dos dois principais sindicatos franceses, a CFDT e FO, que me disseram que, se ele tivesse passado metade do tempo que gastou com os jornalistas a falar com eles, teríamos aprovado 50 leis. Há cinco anos desperdiçados pelo vício inicial, pela impreparação. Hollande é hoje um Presidente da República que se encontra numa posição totalmente inextricável para a França.

Um caso único?
Conhece o poder enorme do Presidente da República Francesa. Um Presidente ver-se obrigado a sujeitar-se às primárias do seu campo já é surrealista. Mas nem sequer poder candidatar-se às primárias, o que pode acontecer depois do livro, é uma vergonha para ele. Uma sondagem recente deu-lhe  uma taxa de satisfação...

De 4 por cento…
Pois é. Se levarmos em conta o poder do Presidente é talvez o maior entre os países ocidentais… O Presidente americano tem muito poder porque o seu país é o mais poderoso. Mas o seu poder intrínseco é muito menor. E ter alguém que não consegue nem sequer apresentar-se é verdadeiramente único.

A candidatura de Alain Juppé parece ir contra a corrente da política francesa e europeia. Em vez de serem os extremos que sobem, é o candidato do centro que parece favorito. Como explica esta diferença?
Temos em França e muitos outros grandes países movimentos populistas muito fortes. Dos dois lados. Vimos esta vaga populista em Espanha, na Alemanha, na França, na Itália. Do outro lado, temos também a percepção de que há, pelo menos em França, uma outra tendência que quero classificar como o “regresso aquilo que é sério”. Temos este duplo impulso. Vemos claramente estes dois movimentos nas primárias, com Nicolas Sarkozy. que tenta surfar o movimento populista.

Como fez em 2007?
E em 2012. Ele diz que quer mobilizar os “esquecidos”. E, do outro lado, Alain Juppé, que quer encarnar a outra tendência que é séria. Quando olhamos para o conteúdo real das propostas económicas, identitárias, de segurança, as propostas são quase as mesmas. O que é diferente é a postura geral e a forma como estas propostas são apresentadas. Com Alain Juppé que quer tranquilizar e unir através de um discurso muito moderado, que não quer dividir, e Sarkozy, cuja postura será muito mais a do confronto e da divisão.

Mas há, apesar de tudo, um programa de Juppé que não se centra nas questões identitárias que Marine Le Pen impôs no debate.
Juppé identificou três grandes sectores que devem merecer três prioridades principais: o campo educativo, o campo económico e o campo securitário. Sarko, por seu lado, só insiste num único tema no seu discurso público. O programa de Juppé é muito mais equilibrado porque uma campanha presidencial faz-se para preparar o exercício do poder, que inclui as questões identitárias e de segurança, mas também as questões económicas e outras. Ele dá prioridade a três, e Sarko é monolítico.

Como é que o seu candidato vê a questão da imigração e dos refugiados, que é, para Marine, um tema central que lhe dá hoje uma enorme adesão?
Segurança e imigração. Le Pen evoluiu. O pai era segurança e imigração. A filha é sobretudo o Islão. Para nós a imigração é uma questão europeia. Confiámos uma parte da questão à União Europeia e ao espaço Schengen, mas não demos a esse espaço os instrumentos para assegurar a sua missão. Um exemplo: o Frontex, a agência que gere Schengen, não tinha guardas fronteiriços. Os que existem hoje foram criados há seis anos, mas não têm ainda acesso aos ficheiros nacionais de controlo, por exemplo, das matrículas dos automóveis. Das duas, uma: ou lhe retiramos a missão e renacionalizamos as fronteiras, ou lhe damos os meios de que precisa. Juppé defende que lhe sejam dados os meios, porque andar para trás é renunciar à livre circulação das pessoas e matar a construção europeia. Em segundo lugar, vem a imigração legal e o que defendemos é que a França, como fazem o Canadá e a Austrália, organize a imigração segundo um sistema de pontos, ou seja, qualificar a imigração. Ora, hoje não temos nem quotas por país nem por profissão. Estou a falar da imigração regular e económica. Para o direito de asilo, é outra questão que não tem nada a ver com a primeira. Sabemos que temos hoje uma distorção do direito de asilo político e o direito de asilo de vocação económica. Para nós é simples: 100 por cento de direito de asilo político; zero de direito de asilo económico. Precisamos de conseguir analisar o pedido de asilo muito depressa. Na Alemanha levam três a seis meses para analisar cada caso, em França são 24 meses. Isto não é sustentável e é isso que, em parte, mata a imigração económica legal.

E é preciso também uma política comum de asilo? Dublin diz que é o país de entrada que deve proceder ao processo mas isso não funciona.
Não é possível nem é aplicado. Mas ainda temos um outro problema além desse. A lista dos países seguros não é a mesma em toda a União Europeia. Em França, a lista não é definida ao nível legislativo, é meramente administrativa. Por isso, há uma diferença entre o nível administrativo e a aplicação judicial. A Alemanha recusa sistematicamente os pedidos de asilo vindos do Kosovo. A França continua a aceitá-los no plano judicial. As listas dos países seguros têm mesmo que ser europeias para podermos funcionar.

Quando li as propostas económicas de Juppé lembrei-me que quando foi primeiro-ministro (1995-97) já defendia algumas delas. Ele caiu por causa da reforma das pensões, que levou milhares e milhares de pessoas para a rua.
É errado. Não foi a rua. Jaques Chirac fez exactamente a mesma coisa que Hollande. Fez-se eleger contra aquilo a que chamávamos “fractura social”, com um programa muito social. Um mês depois, chegou à televisão e disse: o social acabou, agora é o rigor. É como Hollande. Quando se faz uma campanha com um programa e se aplica outro, perde-se qualquer legitimidade. Se Alain Juppé caiu por causa dessas reformas das pensões e do seguro de saúde foi porque elas nunca foram invocadas durante a campanha eleitoral. Nunca. Não tinha a legitimidade para fazer essas reformas, por isso caiu.

Juppé recupera algumas dessas reformas agora…
Sinceramente, não vejo isso assim. Creio que a análise que é feita por muita gente à direita concorda em que, no geral, a maioria dos grandes países europeus já fizeram as suas reformas. É o caso da Alemanha, de Portugal, da Espanha, Irlanda e, mesmo, da Grécia. Mas essas reformas continuam a não ser feitas na França.

E isso é verdade?
E isso é verdade. Precisamos de as fazer para ficarmos ao nível da competitividade desses países. Mas se fizermos isso, fazemos apenas metade do trabalho. Depois há uma segunda etapa, que é saber como é que a França se prepara para os próximos trinta anos, ou seja, a mutação tecnológica e a mutação do carbono. O primeiro nível, são as reformas da fiscalidade, da competitividade, do seguro de desemprego, do tempo de trabalho. Depois, dois grandes desafios: a economia sem carbono e digital.

Estas reformas, se Juppé ganhar vão ser conseguidas? Lembro algumas: reduzir o número de funcionários públicos, aumentar a idade da reforma, acabar com as 35 horas, reduzir os benefícios do desemprego. Os franceses vão aceitar este programa? Hoje os franceses parecem mais preocupados em eleger alguém “decente”, sem sequer olhar para os programas.
É verdade, hoje a apreciação de Juppé é uma questão de postura. De carácter. A sua inflexibilidade seduz. Quanto ao projecto, quando tomarem consciência, será um pouco mais complicado. Eles ainda têm seis meses para o fazer. E nós temos seis meses para fazer a pedagogia desse programa. A primeira parte do programa que acabou de resumir é extremamente punitiva.

Parece a austeridade de que os franceses não gostam, nem da palavra.
Muita austeridade. Paralelamente a esse programa é preciso dar-lhe sentido, apresentar um progresso, oferecer esperança. Daí este segundo “chapéu” de longo prazo., que tem um lado de esperança mas também de inquietude. E tem razão, com um programa assim, temos logo 5 mil pessoas na rua. Mas há duas coisas essenciais. Avançar muito depressa, porque a legitimidade do Presidente da Republica está ligada à sua eleição. Se formos muito depressa, podemos dizer aos sindicatos e à rua, que vai mobilizar-se, que a legitimidade não está na rua. Está nos votos. O que ouvimos sempre em França quando há milhões de pessoas na rua? Os jornalistas e os manifestantes dizem-nos: escutem a rua. Vocês não podem ignorar 100 mil pessoas na rua. Teremos de lhes responder: vocês são simpáticos mas há 40 milhões de franceses que foram votar e mais de 20 milhões que votaram em nós. A legitimidade é o voto. É a única forma de fazer face aos manifestantes. O essencial é conseguir que a legitimidade de uma reforma está no campo do reformador e não no campo dos seus opositores. Vamos ter quatro ou cinco meses, pouco mais do que isso, para fazer as coisas, porque logo que as sondagens começam a cair é tudo muito mais difícil e a oportunidade será perdida.

A propósito de legitimidade, Sarkozy já protestou contra o facto de haver gente de esquerda que tenciona inscrever-se nas primárias dos Republicanos para votarem em Juppé. Como é que responde?
O que Sarkozy diz é que estamos numas primárias da direita e do centro. Não nas primárias da direita, do centro e da esquerda. Tem razão. Mas se não é da direita do centro e da esquerda, também não é da direita, do centro e da extrema-direita. Hoje o que é que nos dizem as sondagens? Que, nas primárias, há 10 por cento que virão da esquerda e 11 que virão da Frente Nacional. Se fosse sincero, diria o mesmo para a extrema-direita. A não ser que ele considere que a direita, o centro e a extrema- direita partilham dos mesmos valores.

Não é chocante o facto de Marine Le Pen ter praticamente garantida a sua presença na segunda volta?
É complicado. A explicação principal é económica. O verdadeiro suporte da Frente Nacional, não é a segurança nem a imigração, do meu ponto de vista. São trinta anos de desemprego. Quando olha para a geografia do voto Le Pen, ela é muito caracterizada. A orla mediterrânica de leste, e trinta departamentos do Norte. O Norte-Pas de Callais, a Picardia, as Ardenas e a Lorena. É nestas quatro regiões que vê a história industrial da França. A grande indústria francesa estava ali concentrada e desapareceu nos últimos 40 anos. Quando olha para a cartografia do voto na Frente Nacional, é aí que tem os seus melhores resultados.

É a mesma coisa que na América, onde uma classe trabalhadora branca vota em Trump (a entrevista foi feita na véspera das eleições presidenciais)?
É exactamente a mesma coisa. Enquanto não tivermos um desemprego em 5 por cento vai ser assim. A última vez que conseguimos fazer recuar a Frente Nacional foi em 2007 e nessa altura estávamos com 7 por cento de desemprego. Insisto: a questão é em primeiro lugar económica. Não é a falar de segurança, identidade, imigração que se consegue combater a Frente Nacional. É apresentar bons resultados económicos.

E esses resultados não são fáceis. As indústrias não vão regressar.
Cabe-nos a nós reencontrar a média da competitividade europeia. Não há qualquer razão para que a Alemanha tenha hoje uma indústria duas vezes mais forte que a nossa ou que a Itália tenha uma indústria 1,5 por cento mais forte que a nossa, quando tivemos pontos de partida semelhantes. Temos capacidade produtiva a recuperar.

Em que medida Juppé está próximo das ideias de Merkel?
Não nos podemos esquecer que Merkel beneficiou das reformas postas em marcha pelo seu antecessor. Continuou-as, em parte. Eu diria em termos simples que a Alemanha está obnubilada pela estabilidade monetária, garantido pelo equilíbrio das finanças públicas. É esta a matriz estrutural da Alemanha, que vem de 1945. A França sempre deu menos atenção ao equilíbrio orçamental. É isso que vemos no discurso de Sarkozy, mas não em Fillon (antigo primeiro-ministro de Sarko) e em Juppé: esta tentação de dizer que o défice ver-se-á mais tarde e que primeiro é preciso relançar a economia. E o relançamento passa sempre pela mesma coisa: aumentar o défice e esperar que o crescimento acabe por reduzi-lo. Há 30 anos que dizemos isso e isso nunca aconteceu. Nesse aspecto há uma muito maior proximidade com a chanceler Merkel. A Alemanha espera um sinal positivo e sério da França e não recuperaremos o motor franco-alemão enquanto a França não tiver recuperado a credibilidade orçamental aos olhos da Alemanha

O crescimento em França é medíocre, e na zona euro também. Pensa que este crescimento mole com taxas de desemprego ainda elevadas é uma das razões pelas quais os europeus começam também a descrer da Europa.
Enquanto não melhorar o poder de compra e enquanto não nos aproximarmos do pleno emprego, com menos medo do amanhã porque menos medo do desemprego, não conseguiremos regressar à serenidade política. Por isso, o principal inimigo do populismo é a Europa, criando um círculo vicioso

Muito difícil de quebrar.
Nos últimos 30 anos, na Europa e em França, perdemos um ponto percentual de crescimento todos os 10 anos. Com o crescimento mundial é exactamente a mesma coisa, apesar das grandes excepções asiáticas. Temos uma interrogação no que diz respeito ao crescimento potencial, que é insuficiente. Temos de olhar para fora. Portugal conta com um mundo lusófono, a que dá uma enorme importância diplomática e económica, muito maior do que aquela que damos à francofonia. Não temos, como vocês, uma estratégia para eles. Hoje percebemos que a francofonia e a África são para a França um campo de crescimento extraordinário.

Como vê a política externa de Hollande, do Mali ao combate ao terrorismo do Daesh?
Que não colca nenhuma questão importante a Alain Juppé. Ele praticamente aprovou tudo aquilo que foi decidido, com algumas objecções secundárias. Para Juppé o que está em causa na política é outra coisa. Estamos todos confrontados com uma dificuldade. Vamos esquecer-nos da Crimeia e aliarmo-nos com Putin para vencer o Daesh? Passamos por cima da anexação de um país contra todas as regras internacionais, em nome de um inimigo comum? Segunda questão: esquecemo-nos do que fez Al-Assad na Síria, com centenas de milhares de mortos civis, em nome de um combate comum contra o Daesh? É complicado. A tese de Sarkozy e de Juppé é mais no sentido de encontrarem uma “terceira via”, que consiste em dizer que não temos escolha neste momento, que temos de deixar passar Al-Assad, mas é preciso que, na resolução do problema do Daesh, esteja uma garantia da sua saída negociada com os russos. A tese de François Fillon, por exemplo, é de ir muito mais longe na negociação com a Rússia. Seja o que for que aconteça, combater o Daesh é uma guerra, para a qual é preciso ter os meios militares e políticos necessários para vencê-la. Neste momento, temos os meios os militares suficientes mas não os políticos. Lidamos ou não com a Síria? Lidamos ou não com Putin?

E a nível global? Qual é a política de Juppé para a França?
É muito clássica e conservadora. Somos aliados dos americanos mas somos independentes. É a diferença que temos em relação à Inglaterra e à Alemanha. É esta posição “intermediária” entre americanos e russos. Com a crescente tensão entre a Rússia e a América, esta terceira posição pode recuperar o brilho que perdeu depois da queda do Muro de Berlim.

Finalmente, o "Brexit"?
É preciso aceitar a escolha democrática dos britânicos mas também é preciso andar depressa. Quando se estar fora, está-se fora.

Os dois países são os únicos que têm um Tratado de Defesa e uma capacidade militar real.
Creio que, nesse domínio, a relação bilateral manter-se-á forte. Mas vai ser preciso, num momento ou outro, que o peso da despesa militar da União Europeia garantida por dois países seja partilhada. Verificamos, por exemplo, que, sem o nosso esforço militar, estaríamos com um dívida da ordem dos 70 por cento, mais ou menos a mesma que a Alemanha. Suportamos despesas militares que os alemães não suportam. Esta questão vai ter de ser colocada: ou tiramos a despesas militares do Orçamento, ou partilhamo-la. Quando toda a gente perceber que o risco do Daesh faz com que as questões de segurança e de defesa deixem de ser domínios onde podemos continuar a fazer economias, é preciso que alguém pague, para além de nós.

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