A farsa da adesão da Turquia à União Europeia

A União Europeia pretendia ter o melhor de dois mundos: ser um virtuoso actor político pós-moderno e ao mesmo tempo, nos bastidores, manteve a clássica realpolitik onde predominam os interesses e o poder. Acabou por ficar com o pior de ambos.

1. Assistir a uma boa farsa teatral é sempre agradável. É uma modalidade burlesca caracterizada por personagens envolvidos em situações caricatas, ou absurdas. O seu enredo é cómico e malicioso, provocando o riso dos espectadores. Os personagens são exageradamente fracos ou obtusos, covardes ou maliciosos. Este género, que estava muito em voga no final da Idade Média e Renascimento, parece ter ressurgido na política europeia do século XXI. As farsas políticas também poderiam ser divertidas, se os assuntos não fossem sérios e não tivessem consequências prejudiciais para as gerações actuais e futuras. É o caso do processo adesão da Turquia à União Europeia. Começou em meados da década anterior num ambiente de optimismo irreflectido quanto às múltiplas consequências do processo, sobretudo no médio e longo prazo. Agora está a tornar-se na maior farsa da política europeia do século XXI. A par da crise da Zona Euro e da crise dos refugiados, é uma causa maior da perda de atracção da União Europeia. Aos olhos de um observador atento e crítico o processo apresenta-se fundamentalmente como vamos descrever em seguida.

2. O primeiro acto oficial do processo de adesão da Turquia à União Europeia ocorreu em finais de 1999, quando, na vaga optimista dos anos 1990, o país foi aceite como candidato à adesão. Algum tempo depois, em finais de 2004, a União Europeia decidiu abrir oficialmente negociações, as quais se iniciaram no ano seguinte, com um aparente grande entusiasmo de ambas as partes. Na altura, poucos pensaram ir assistir a uma farsa política, que se tornou muito evidente nos últimos anos, mesmo para os mais distraídos. Inicialmente, do lado europeu, a ideia era a de uma União Europeia a rivalizar com os grandes impérios do passado. Iria do Atlântico — a Ocidente —, até à Mesopotâmia — a Oriente —, na fronteira Leste da Turquia. O projecto era grandioso e parecia exequível. Entre os grandes Estados da União apenas a França de Jacques Chirac era céptica e renitente quanto às virtudes do alargamento. O Reino Unido de Tony Blair apoiava incondicionalmente a adesão da Turquia. (Apesar disso, ou talvez também por causa disso, foi o primeiro a querer abandonar a União Europeia no referendo do Brexit, de 23/6/2016). A Alemanha, na altura governada pelo SPD de Gerhard Schröder, engrossava igualmente as fileiras dos entusiastas do alargamento.

3. Na altura da decisão de abrir negociações de adesão Angela Merkel era uma desconhecida na política europeia. No ano seguinte, a candidata a chanceler pela CDU disputou, pela primeira vez, o poder com o SPD de Gerhard Schröder. Acabou por vencer as eleições legislativas de finais 2005, embora sem maioria absoluta. Chegou a chanceler num governo de uma grande coligação com o SPD. Entretanto, Schröder saiu da cena política. Nessa época, provavelmente a única coisa que dava visibilidade na política europeia a Angela Merkel, era a sua posição divergente do governo de Schröder, quanto à adesão da Turquia. Merkel e a CDU contestavam a possibilidade de adesão e rejeitavam que o processo de negociações pudesse ter a garantia de levar à adesão plena, como era prática europeia até aí. A alternativa era a de uma “parceria privilegiada”. A posição de Angela Merkel irritava o outro grande protagonista do processo de adesão — o então desconhecido Primeiro-Ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Aos olhos dos europeus mais entusiastas do alargamento, o líder do AKP, um partido conservador-islamista, trazia consigo uma Turquia moderna, democrática, respeitadora dos direitos humanos e das minorias. Erdogan era a prova que democracia, islão e valores europeus eram totalmente compatíveis.

4. Uma análise minuciosa mostra como o aspecto de farsa esteve sempre latente nas negociações, quer do lado turco, quer do lado europeu. (Nos anos iniciais era é pouco perceptível do exterior). Ao contrário do exteriorizado, provavelmente Erdogan, tudo indica, nunca quis ser membro da União Europeia. Claro que, como protagonista de uma boa farsa, diz frequentemente o contrário do que pensa, por conveniência dos seus objectivos políticos. Nos primeiros anos — numa altura em que o seu poder era frágil internamente — as negociações de adesão foram-lhe muito úteis. Permitiram-lhe libertar-se gradualmente dos inimigos internos, funcionando a União Europeia como contra-poder. Mas o seu “europeísmo” sempre foi instrumental. Agora, que a oposição e os sectores secularistas foram dominados — os militares, o judicial, a administração pública e a imprensa estão submetidos ao seu poder —, fala com voz grossa à União Europeia. Por sua vez, do lado europeu, e já desde o início, provavelmente vários Estados não queriam mesmo a Turquia na União. (Hoje há ainda mais Estados que não a querem.) Sempre foi pouco desejada pela França e pela Áustria, mas também pela Grécia ou por Chipre, entre outros Estados mais discretos diplomaticamente. Mas, claro, oficialmente, para não ficarem com o ónus da rejeição, também a apoiavam, alimentando a farsa da adesão do lado europeu.

5. Nos seus actos mais recentes, o processo está marcado por episódios rocambolescos e absurdos, que fariam rir se o assunto não fosse dos mais sérios. Para poderem aderir à União Europeia, os Estados candidatos têm de cumprir determinados critérios, nos termos do artigo 49.º do Tratado da União Europeia. Esses critérios, formulados pelo Conselho Europeu de Copenhaga, em 1993, incluem, de forma inequívoca, a estabilidade das instituições democráticas, o Estado de Direito, os direitos humanos e o respeito pelas minorias e a sua protecção. O que faz o governo da Turquia? Desde a tentativa de golpe de estado de 15/7, as autoridades detiveram 10 membros da Grande Assembleia Nacional; cerca de 150 jornalistas (o maior ataque deste tipo à liberdade de imprensa a nível mundial) e 2386 juízes e procuradores; outras 40 mil pessoas foram também detidas, das quais mais de 31 mil permanecem em situação de detenção. E, segundo o relatório de 2016 da Comissão relativo à Turquia, 129 mil funcionários públicos ou foram suspensos, ou foram demitidos, na sua maioria sem qualquer acusação até à data. (Ver o teor da resolução de 24/11 do Parlamento Europeu sobre as relações UE-Turquia 2016/2993/RSP, apelando ao congelamento das negociações). A arbitrariedade e desproporção da reacção chocam frontalmente com os valores europeus. A ironia é que a farsa em que se transformou o processo de adesão não convém apenas a Erdogan. Também para Angela Merkel — que chegou ao poder a fazer campanha contra a adesão da Turquia —, é agora útil para a sua ambição política.

6. Merkel ambiciona um quarto mandato como chanceler da Alemanha. Já anunciou a sua intenção se se candidatar, concorrendo às próximas eleições legislativas que irão decorrer no Outono de 2017. As ameaças à sua ambição política são fundamentalmente duas. Do centro-esquerda surgiu o recente regresso de Martin Schulz, vindo da presidência do Parlamento Europeu para a política interna. Poderá ser um concorrente bem mais forte do que o actual líder do SPD, Sigmar Gabriel. Da direita populista, a ameaça vem de Frauke Petry e do seu partido Alternativa para a Alemanha (AfD). Este prospera eleitoralmente com as tensões sociais e políticas geradas pela política abertura de fronteiras e acolhimento de refugiados / migrantes. O cálculo de Merkel, feito no Verão de 2015, quanto às possibilidades de acolhimento da sociedade alemã, mostraram-se optimistas. (Merkel viu aí uma oportunidade melhorar da imagem da Alemanha, danificada pela sua atitude dura e intransigente na crise da Zona Euro). No Outono de 2015, a situação começou a ficar fora de controlo. Por isso, sem querer, Merkel ligou o seu futuro político à crise dos refugiados. Ao mesmo tempo, para tentar tapar o fluxo vindo da Síria e Iraque, tornou-se dependente da Turquia de Erdogan. Resultado: para salvar o seu futuro político a farsa tinha de continuar — e continua — pondo em causa os valores europeus. Por pressão alemã, foi feita a concessão de abertura de negociações em novas áreas à Turquia e prevista a possibilidade de entrada de cidadãos turcos no espaço Schengen sem vistos. Tudo isto com mais três mil milhões de euros para acolher / manter refugiados ou migrantes no seu território, valor que poderá ser duplicado. Merkel ficou refém do acordo com Erdogan e os europeus ficaram reféns da ambição de Merkel.

7. Erdogan não tem nada a perder em afirmar a vontade de adesão à União Europeia. (Teria é muito a perder se a Turquia entrasse, mas essa é outra história). A tentativa falhada de golpe de estado de 15/7 — obscura nos seus contornos —, tornou realizável a sua ambição de poder. Agora tem um controlo absoluto do Estado, afastou os críticos e pode re-islamizar a sociedade e as instituições. Pode alterar a Constituição para um sistema presidencial à sua medida. Claro que estes planos estão em rota de colisão com os valores da União Europeia, mas isso não impede a farsa de continuar. Erdogan reitera querer aderir, mas que os europeus não o deixam. Poderá, por isso, convocar um referendo em 2017. Ameaça replicar o Brexit, mesmo sem a Turquia ser membro da União. Quer aderir à Organização para Cooperação de Xangai (Rússia, China, Cazaquistão Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão), criada em 2001. Ao mesmo tempo, diz, poderá rasgar o acordo sobre os refugiados, inundando a União com novas vagas do Médio Oriente. Este animus, que parece mais a ameaça de um inimigo, é insólito para um governo de um candidato à adesão. Mas a responsabilidade é também da União Europeia. Pretendia ter o melhor de dois mundos: ser um virtuoso actor político pós-moderno onde a democracia e os direitos humanos são fundamentais; ao mesmo tempo, nos bastidores, manteve a clássica realpolitik onde predominam os interesses e o poder. Acabou por ficar com o pior de ambos. Urge salvar o que resta dos valores europeus e da construção europeia. É altura de dar um final a esta narrativa absurda e dizer, como na Farsa de Inês Pereira de Gil Vicente, “E assim vão e acaba a dita Farsa”.

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