A extrema-esquerda não enjeita Le Pen

Por muito que se sublinhe o carácter histórico e volumoso da votação de Le Pen, a verdade é que ficou bem abaixo do que há uns meses atrás se esperava e se temia.

1. Hoje é dia 25 de Abril. Faz sentido, por isso, falar sobre a liberdade, sobre a democracia e, muito em especial, sobre a democracia liberal. E à luz dos resultados das eleições presidenciais francesas, fará sentido falar sobre os inimigos da democracia liberal. A democracia liberal, cultivada nas comunidades políticas ocidentais, é um regime equilibrado e moderado, que, de um modo dinâmico e aberto, procura harmonizar as tensões entre os ideais da liberdade e da igualdade, arrancando do valor essencial da dignidade da pessoa. Como regime, tem enormes defeitos e disfuncionalidades, mas é comprovadamente, por experiência, ensaio e erro, o menos mau de todos os regimes. Atrever-me-ia mesmo a formular a proposição afirmativa: é o melhor de todos os regimes.

2. Já muito, mesmo muito, se disse sobre as eleições francesas. Antes de ir, porém, ao tema que este dia 25 de Abril tão oportunamente suscita, gostava de deixar umas notas soltas. Primeira, para dizer que, por muito que se sublinhe o carácter histórico e volumoso da votação de Le Pen, a verdade é que ficou bem abaixo do que há uns meses atrás se esperava e se temia. Segunda, para lembrar que, em 1974, também o candidato vencedor Giscard D’Estaing não provinha do partido gaullista, pese embora pertencesse ao mesmo espaço político. Era jovem e autodefinia-se como centrista e europeísta; derrotou o partido principal do espaço do centro-direita, com apoios às vezes camuflados dentro dele (Chirac, por exemplo). Ora, Macron também navega no magma político do PS francês (embora muito chegado ao centrismo) e recebeu até apoios explícitos de dirigentes relevantes como Valls ou Delanoë. Ou seja, apresenta-se como centrista e europeísta, é ainda mais jovem e tem alguns pergaminhos e apoios logo à primeira volta no espaço político socialista. Terceira nota, para relembrar que o semipresidencialismo da V república francesa, quer sob a égide de Mitterrand, quer sob a égide de Chirac, viveu em coabitação política. Que o mesmo é dizer que o Presidente teve de conviver com uma maioria parlamentar e um governo que não eram da sua cor política. Assim sucedeu entre 1986-1988 com Mitterrand-Chirac, entre 1993-1995 com Mitterrand-Balladour e entre 1997-2002 com Chirac-Jospin. Pois bem, se Macron vencer as eleições presidenciais, como ardentemente espero, e tiver de formar um governo proveniente de uma maioria parlamentar de cor diversa não estará propriamente a inovar. É certo que esta será necessariamente uma coabitação atípica por referência àquelas outras três e que será a primeira no quadro dos mandatos quinquenais, mas há precedentes e convém não viver na ilusão de que tudo o que nos acontece é radicalmente novo e não conhece paralelo.

 3. É que ele há coisas que não mudam. E, por isso, um dos factos políticos da noite – apesar de ter foros de escândalo – em nada me surpreendeu. Em Portugal, muito dado à complacência e tolerância com a extrema-esquerda, esse facto relevantíssimo passou despercebido. O candidato da esquerda radical Jean-Luc Mélenchon, que obteve um resultado assinalável, foi incapaz de endossar o apoio a Emmanuel Macron na segunda volta. Ou seja, Mélenchon e a extrema-esquerda assumiram uma posição de indiferença e de equidistância entre Macron e Le Pen. Para a extrema-esquerda, um candidato moderado de centro, cultor da democracia liberal, da economia de mercado e europeísta convicto é tratado ao mesmo nível da candidata da extrema-direita, xenófoba, anti-europeia e, hélas, “social-estatista”. 

Não há aqui surpresas, nem pode haver. Historicamente, a extrema-esquerda e a extrema-direita foram sempre cúmplices porque ambas, mesmo com disfarces e artimanhas, execram a democracia representativa; detestam a autonomia da sociedade civil e a primazia dos direitos fundamentais; patrocinam o proteccionismo, o nacionalismo e o fechamento das fronteiras. Na dinâmica política, que gostam mais de fazer na rua do que nas urnas, acabam por precisar uma da outra para se emularem. Não é, aliás, por acaso que, um pouco por todo o lado, há transferência directa de votos dos confins da esquerda para os confins da direita. E pese embora, reconheço-o sem rebuço, a esquerda radical se conforte e reconforte com uma retórica “pseudo-humanista”, a verdade é que as experiências políticas concretas de aplicação dos seus programas levaram todas à ditadura política e ao desastre humanitário. Foi assim na Rússia e na União Soviética, na China e em Cuba, na Albânia e no Camboja, na Nicarágua e na Coreia do Norte. E está a ser assim, com contornos cada vez mais dramáticos, na incensada Venezuela de Chávez e Maduro. Mélenchon inspira-se directamente no socialismo bolivariano que é o exemplo acabado de destruição dos pilares democráticos e de devastação económica, social e humanitária. É profundamente anti-europeu e nisso está mais próximo de Marine Le Pen que qualquer outro candidato. Mélenchon e Le Pen são igualmente admiradores de Putin e do seu carisma patriótico e proteccionista. Rafael Correa, Chávez e Putin são as referências da França Insubmissa.

4. Por mais críticas que me dirijam, não me canso de o dizer: há uma equivalência política, sociológica e moral entre a esquerda radical e a direita radical. Com origens e motivações diversas, mas com bases sociais parecidas e partilhadas, comungam o mesmo inimigo: as democracias liberais do Ocidente. E, mais do que isso, medram uma às costas da outra, o que faz delas aliadas tácticas inseparáveis. Mélenchon até pode agora vir corrigir o tiro, mas será tarde para causar uma primeira boa impressão. Diante de um duelo destes, só havia uma atitude possível: recusar Le Pen. A sua atitude é um escândalo e desmente toda a retórica da extrema-esquerda: ele não rejeita Le Pen nem o seu o modelo político. E para o Bloco e o PCP, será tudo igual? Quem equipara Le Pen a Macron, quem não a denuncia não preza a liberdade nem a democracia.

 

SIM E NÃO

SIM. Emmanuel Macron. Ao fazer uma campanha centrada na pertença à União Europeia e no papel europeu da França, Macron mostrou aos partidos tradicionais que conceder à agenda populista não paga.

NÃO. François Fillon. Se Hammon foi o grande derrotado, Fillon esteve pouco melhor. Revelou falta de ética republicana e pôs o ego político à frente do seu partido e do seu país.

 

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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