A Europa é o Japão mais o Islão

A competitividade e a demografia tendem a gerar um círculo vicioso. O esgotamento que podemos observar nas economias da velha Europa e Japão espelha o problema.

1. Demografia e competitividade. Assuntos que marcam a agenda política europeia e nacional dos últimos anos. No debate em torno dos mesmos, seria útil os europeus interrogarem-se sobre as razões do declínio do Japão nas últimas duas décadas. Na transição dos anos 1980 para os anos 1990, o Japão era visto como podendo ascender ao topo da economia mundial, ultrapassando os EUA. Mais do que a Europa, era o desafiador da supremacia norte-americana. Hoje, tal possibilidade é liminarmente afastada. A evolução económica e política foi num outro sentido: a de um período de sucessivas humilhações para o orgulho nacional japonês. Ritmos de crescimento muito baixos têm alternado com períodos de estagnação. Emergiram significativas vulnerabilidades nas grandes multinacionais do país, incluindo impensáveis tomadas de controlo por capitais estrangeiros. O seu histórico e maior rival — a China —, ultrapassou-o no ranking das grandes economias mundiais. A sua dívida publica, acima dos 240% do PIB, é a maior do mundo, superior à da Grécia. Como se não bastassem estes sinais evidentes de retrocesso económico, o grave acidente ocorrido na central nuclear de Fukushima, abalou, ainda mais, a autoconfiança do Japão e a sua imagem no mundo exterior.

2. Este processo de declínio pode mostrar à Europa o seu próprio futuro. A segunda economia mundial, que combina um modelo de capitalismo com um Estado social generoso, foi um dos primeiros derrotados da actual globalização. O que levou o Japão a não triunfar quando o capitalismo de mercado se intensificou e se globalizou? Para além das explicações económicas, frequentemente desligadas da complexidade do mundo real, há um evidente problema demográfico. O Japão tem a população mais envelhecida do mundo — o que é o reverso de ser um país no topo da esperança média de vida —, hoje superior a 84 anos (a idade média da população é de 46 anos).  Dos cerca de 127 milhões de japoneses quase 25% situam-se no grupo etário acima dos 65 anos. Quanto à população abaixo dos 15 anos pouco ultrapassa os 13% do total. Para além disso, com uma taxa de fertilidade de 1,4 filhos / mulher, significativamente abaixo dos 2,1 necessários para a renovação demográfica e social, a população deverá continuar a reduzir-se.

3. A Europa tem inscrita uma demografia similar à japonesa. É perceptível no caso da Alemanha, a maior economia da União Europeia e da Zona Euro. Tendo cerca de 81 milhões de habitantes, cerca de 21,5% situam-se no grupo etário acima dos 65 anos. Quanto à população mais jovem, abaixo dos 15 anos, não chega a 13% do total. Para além disso, a taxa de fertilidade é inferior a 1,5 filhos / mulher, situando-se, também, notoriamente abaixo dos 2,1 necessários para a renovação sócio-demográfica. Encontramos, assim, no cerne económico da Europa, sintomas de declínio demográfico, num horizonte temporal cada vez mais próximo. Mas será a Alemanha um caso isolado na Europa? Não é, tal como se pode facilmente verificar, por exemplo, pelo caso da Itália, a terceira maior economia da Zona Euro. Actualmente este país tem cerca de 62 milhões de habitantes, sendo a esperança média de vida de 82 anos. Destes, mais de 21% situam-se no grupo etário acima dos 65 anos. Quanto à população mais jovem, abaixo dos 15 anos, é inferior a 14% do total. Para além disso, a taxa de fertilidade, pouco superior a 1,4 filhos / mulher, situa-se, tal como a do Japão, muito abaixo dos 2,1 necessários para assegurar a renovação sócio-demográfica. Poderiam multiplicar-se estes exemplos por vários outros casos, incluindo o português. A imagem da Europa está espelhada neles.

4. No actual capitalismo globalizado o sucesso do homo economicus passa pela competitividade. Implica, para uma empresa, para um sector, ou para uma economia nacional ser capaz de enfrentar a concorrência e vencê-la, obtendo a preferência dos consumidores no mercado nacional e / ou internacional. Mas o capitalismo necessita de um crescimento permanente o qual, entre entras coisas, precisa uma demografia em renovação e crescimento. Paradoxalmente, as exigências de competitividade ligadas à extrema competição capitalista tendem a criar as condições do declínio demográfico. A consequência inesperada, ou subestimada, é que o próprio modelo capitalista fica em causa. Na maioria dos casos, são as economias não europeias, que chegaram tardiamente ao capitalismo globalizado, quem escapa hoje a este problema: dispõem de uma população em crescimento bem mais jovem do que a europeia e japonesa; os seus mercados estão longe de estar saturados de produtos ou serviços — pelo contrário, têm ainda enormes necessidades não supridas; podem colocar uma parte importante da população no mercado de trabalho, ou seja a produzir e a consumir. Para europeus e japoneses estas reservas de crescimento estão esgotadas.

5. A competitividade e a demografia tendem a gerar um círculo vicioso. O esgotamento que podemos observar nas economias da velha Europa e Japão espelha o problema. O mercado de trabalho praticamente não absorve população acima dos quarenta ou quarenta e cinco anos, quando, cada vez mais, a população europeia se situa acima dessa faixa etária. Para a população activa, o trabalho ou emprego tende a ocupar cada vez mais horas e a invadir mais esferas da sua vida. O adulto jovem — situado, precisamente, na única faixa etária que pode inverter o declínio demográfico — é assim inserido numa engrenagem onde ser produtor (de preferência competitivo) e consumidor (o mais possível para o seu nível de rendimento), se tornou a razão principal se não mesmo última da sua existência. O trabalho/emprego e o consumo / diversão são o espaço privilegiado da vida humana. No longo prazo, este modelo funciona contra as próprias necessidades da economia capitalista: alimenta uma demografia que corrói o dinamismo do mercado (e também o Estado social, embora aí a visão neoliberal veja virtudes).

6. O círculo vicioso entre competitividade e demografia é abordado de forma diferente pelo Japão, EUA e Europa. Na sua insularidade, o Japão mantém-se um país essencialmente fechado à população migrante. Poderia ter seguido um modelo similar ao dos europeus, de se abrir a populações oriundas dos seus antigos territórios coloniais, da China, Coreia, etc. Historicamente, tal como os europeus, foi uma grande potência imperial e colonial entre o final do século XIX e a II Guerra Mundial. Não o faz. Procura adaptar-se à nova situação mantendo-se um Estado-nação homogéneo, como sempre foi ao longo da sua história. Os EUA têm uma outra abordagem radicalmente diferente. Não são, nunca foram historicamente, um Estado-nação, no sentido europeu do conceito, ou, seja, similares à França, à Alemanha ou a Portugal, por exemplo. Não por acaso, Raymond Aron chamou-lhes a república imperial. Aglutinam, como todos os impérios, populações diversas. A sua população é oriunda de fluxos migratórios — os mais antigos dos WASP ((White, Anglo-Saxon and Protestant / Branco Anglo-Saxónico e Protestante) de proveniência europeia —, e dos afro-americanos ligadas ao tráfico de escravos; os mais recentes de populações hispânicas, mas também asiáticas. Entre as áreas mundo capitalista globalizado mais antigo, os EUA são a excepção demográfica.

7. Os EUA têm absorvido permanente populações tradicionalistas — ou seja, com dinâmicas demográficas só encontradas nas culturas que se mantêm ancoradas na família tradicional —, integrando-as na sua lógica económica e social. Não têm, propriamente, um Estado social pelo que famílias numerosas inactivas não oneram o sistema. É isto que lhes tem permitido escapar ao círculo vicioso da competitividade e demografia. Hoje, o grosso vem da sua periferia da América Latina (permite mão-de-obra abundante e a baixo custo) e também da Ásia (permite mão-de-obra com propensão para a matemática, ciência e tecnologia). No caso dos hispânicos, são populações relativamente próximas culturalmente. Mesmo quando não são, como os asiáticos, geralmente sentem atracção pelos valores dos EUA e não apenas pelo seu bem-estar material. Mantêm o seu constante crescimento demográfico: actualmente têm mais de 320 milhões de habitantes. Aspecto importante: menos de 15% situa-se no grupo etário acima dos 65 anos e a população mais jovem, abaixo dos 15 anos, é cerca de 19% do total — comparativamente ao Japão e à Europa (Alemanha, Itália, etc.), são os únicos onde a população jovem supera a população sénior. Para além disso, a taxa de fertilidade, na ordem dos 1,9 filhos / mulher, é das que mais se aproxima dos 2,1 necessários para assegurar a renovação sócio-demográfica. A este valor acresce o incremento permanente dos fluxos migratórios. Naturalmente que este dinamismo demográfico é feito à custa do crescimento das populações hispânicas e asiáticas, especialmente das primeiras. A população WASP — que revela tendências similares às europeias e japonesas — é hoje uma minoria. E a Europa?

8. No pós-II Guerra Mundial a Europa abriu-se às populações oriundas dos antigos impérios coloniais. Pela sua proximidade geográfica, o Mediterrâneo Sul e o Médio Oriente tornaram-se a sua principal proveniência migratória. Um pouco como ocorre com os EUA face às populações hispânicas da sua periferia Sul: México, Cuba, etc. Mas há diferenças fundamentais. Ao contrário dos EUA, na Europa — tal como ocorre no Japão —, há um enraizamento histórico do Estado-nação. A União Europeia aglutina um conjunto de Estados-nação. Nesse aspecto, o processo histórico-político europeu é substancialmente diferente do norte-americano. Não é exagero afirmar que a lógica do Estado-nação europeu está mais próxima do Japão do que da heterogeneidade cultural intrínseca dos EUA. Por outro lado, por razões históricas, políticas e religiosas, as populações migrantes que afluem à Europa não estão tão próximas culturalmente — a língua é um grande marco cultural e barómetro da diferenciação. Nem se sentem atraídas pelos valores e cultura europeia, pelo menos no mesmo grau daqueles que vão para os EUA. As populações do Sul e Leste do Mediterrâneo — imbuídas da matriz cultural e religiosa do Islão —, vêm, frequentemente, os valores culturais da Europa em termos de competição, e não como algo a replicar ou adoptar. Além disso, os europeus também estão imbuídos do fardo do seu próprio passado, de Estado-nação homogéneo e das suas profundas rivalidades. Estas são diferenças fundamentais com implicações largamente subestimadas. Ao pretender imitar os EUA, a Europa do pós-guerra tornou-se num Japão mais o Islão. Não quebrou o círculo vicioso entre competitividade e demografia que a arrasta para o declínio.

Post Scriptum: este artigo é um desenvolvimento de algumas ideias que originalmente apresentei no meu livro A Europa em Crise (Quid Novi, 2012).

Investigador

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