A Europa e a armadilha do progresso (I)

As catástrofes da primeira metade do século XX levaram a ideologia do progresso transformar-se e a expandir-se noutras áreas — a economia e a sociedade

1. A Europa não pode parar! A Europa tem de estar em permanente movimento: mais tratados, mais integração, mais Estados-membros. Este era o slogan, não oficial, da União Europeia, pelo menos até à crise de 2007 / 2008 e à actual vaga de eurocepticismo. Tal como acontece a globalização, ninguém sabe muito bem qual é a sua finalidade última — ou melhor, há múltiplas respostas contraditórias que tornam praticamente insolúvel a questão: um grande mercado? Uma união política federal? Tal como a globalização, a construção europeia está imbuída daquilo a que Pierre-André Taguieff chamou criticamente o “movimentismo”. (Ver “L’ ide´e de progre`s. Une approche historique et philosophique” in Cahier du CEVIPOF, n.º 32, 2002, pp. 71-73). Nas suas palavras cáusticas, “é uma nova variante da religião do progresso”, uma espécie de “culto do movimento pelo movimento”, uma forma de “exaltação da fuga para a frente.” Esta versão do progresso tem, também, o seu tipo ideal de ser humano. Alguém “sem memória e inscrição histórica, reduzido à sua capacidade de adaptação, e, cada vez mais, à sua aptidão para o sobreconsumo. Capaz de se conformar com todas as normas, de se adaptar a todos os contextos, de variar de acordo com todas as variações conjunturais. O ser planetário ultramóvel e jubilante, feliz na sua instabilidade e insegurança perpétuas.” Como se chegou a esta evolução / degeneração da ideia de progresso, a qual está a afectar o futuro dos europeus e da Europa?

2. A armadilha do progresso é algo que as sociedades humanas experimentam quando, na busca de progresso, introduzem, de forma inadvertida, problemas para os quais não têm os recursos, ou a vontade política, para os resolver. No pior cenário podem levar ao colapso civilizacional. O termo foi difundido pelo escritor anglo-canadiano, Ronald Wright. No seu livro A Short History of Progress (Canongate Books, 1994), este dá um exemplo que pode ser considerado clássico do problema. “A bomba atómica, uma progressão lógica da seta e da bala, tornou-se a primeira tecnologia a ameaçar a nossa espécie inteira da extinção. É aquilo a que eu chamo uma ‘armadilha do progresso’.” (p. 30). Segundo Wright, o ser humano tem o hábito — o qual parece ser quase uma fatalidade —, de caminhar para as armadilhas do progresso. Wright sugere uma explicação para a incapacidade humana de antecipar as consequências de longo prazo, caindo nas armadilhas geradas pelas transformações do progresso. A concentração de poder nas elites leva a que estas possam continuar a prosperar mesmo quando já existem importantes efeitos secundários negativos, uma vez que as consequências recaem sobre a sociedade em geral. Mas o que é, afinal, o progresso?

3. O progresso, termo com origem no latim, progressus, é a ideia que se traduz na convicção de que os avanços na ciência, na tecnologia e na organização social trazem uma melhoria permanente, tendencialmente infinita, da condição humana, através do uso da razão e das capacidades humanas. A ideia do progresso tem várias vertentes nas quais de desdobra: a vertente do progresso científico — os avanços da ciência e tecnologia; a vertente do progresso do bem-estar — o crescimento da economia e da satisfação das necessidades; e a vertente do progresso social — a evolução das formas de vida humana e dos valores.  Em qualquer uma das suas facetas, tem subjacente a convicção das possibilidades infinitas dos avanços da ciência e da tecnologia; a convicção das possibilidades intermináveis  do aumento do bem-estar pelo crescimento da economia; e a convicção das possibilidades permanentes do progresso social pela transformação das estruturas sociais e dos valores. Na sua origem, a moderna  ideia / ideologia do progresso está estreitamente associada ao movimento intelectual e político do Iluminismo, ocorrido no  século XVIII. Os filósofos iluministas e a Enciclopédia de Diderot tiveram um papel central na luta contra a autoridade, a tradição e a superstição vistas como obscurantistas. No século XIX, a ideia optimista de um progresso permanente e linear, associada aos avanços da ciência e tecnologia e ao capitalismo, impulsionado pela revolução industrial, transformou-se numa ideologia, numa visão do mundo orientada para o futuro. O europeu está impregnado dessa mentalidade.

4. Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, engenheiro de formação, reflectia a crença inabalável no progresso, na Europa de há um século atrás. Na sua fase futurista influenciada por Filippo Marinetti — o autor do icónico manifesto Futurista de 1909 —, produziu uma série de poemas de exaltação do mundo moderno, do progresso técnico e científico, da industrialização e da evolução imparável da humanidade. O homem novo, moderno, tecnológico, era superior a tudo o que tinha existido no passado. A Ode Triunfal (escrita em 1914 e publicada em 1915, no primeiro número da revista Orpheu) espelhava esse fascínio: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. [...] Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! / Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! / Olá grandes armazéns com várias secções! / Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem! / Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! / Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! / Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! / Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.” (Ver Arquivo Pessoa, Álvaro de Campos, Ode Triunfal, http://arquivopessoa.net/textos/2459). Poucos meses depois de ter sido escrita em Londres, em Junho de 1914, iniciava-se a carnificina da I Guerra Mundial.

5. No século XX os traumas da I e II Guerra Mundial levaram a questionar a ideia de progresso. Isso ocorreu especialmente quanto à ciência e tecnologia. Theodor W. Adorno, um dos pensadores mais importantes da Escola de Frankfurt, fez uma poderosa crítica do optimismo sobre o progresso e o uso da razão.  A Mínima Moralia (trad. pt., Edições 70, 2001), contém mais de uma centena e meia de aforismos. Foi escrita durante a II Guerra Mundial e no imediato pós-guerra, sendo influenciada pela imensa tragédia da (auto)destruição europeia, amplificada pelos avanços da ciência e da tecnologia. Na primeira parte, sob o título “Longe do perigo”, Adorno escrevia de forma amarga e irónica, refutando o optimismo sobre o progresso de Hegel: “‘Vi o Espírito do mundo‘, não a cavalo, mas com asas e sem cabeça”. A alusão  era às bombas voadoras V1 e V2 — a tecnologia precursora dos modernos mísseis balísticos —, que a Alemanha nazi lançava, nessa mesma altura, destruindo as cidades europeias e aterrorizando as  populações civis. Adorno interage com a metáfora de Hegel, escrita um século e meio antes, onde este dizia ter visto “o espírito do mundo montado num cavalo”. Hegel reflectia o entusiasmo com as ideias do Iluminismo e da Revolução Francesa nos intelectuais germânicos do início do século XIX. Quanto ao aforismo da Mínima Moralia, é uma tomada de consciência da armadilha do progresso científico-tecnológico. Há, por isso, hoje, uma rejeição forte da sua linearidade e automatismo. Mas as catástrofes da primeira metade do século XX levaram também a ideologia do progresso a transformar-se e a expandir-se noutras áreas — a economia e a sociedade. Em ambas estão a surgir novas armadilhas. Como mostrarei na segunda parte deste artigo, a Europa contemporânea está presa na degeneração “movimentista” do progresso.

Investigador

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