A democracia vacila

A democracia, para poder dar-nos a liberdade, precisa de escolhas racionais.

Os tempos que vivemos estão a dar-nos uma dura lição: a democracia vacila, tanto na Europa como nas Américas, pois vemos que das consultas aos povos não saem decisões racionais, mas sim escolhas emocionais. Na Venezuela, elege-se aquele que depois se transforma em tirano. Nos Estados Unidos, as bases dos partidos escolhem candidatos que objectivamente não reúnem as qualidades que racionalmente se requerem de um futuro presidente da maior potência económica e militar à face da Terra. Em França, a xenofobia alimenta a extrema-direita ao mesmo tempo que o povo elege, sucessivamente, presidentes sem estatura (intelectual) com base em promessas de vendedores de feira. A Espanha cede a uma extrema-esquerda que, para se vender melhor, é capaz de dizer que é social-democrata; e que apenas a divisão entre constitucionalistas e nacionalistas impediu de chegar ao poder. Podíamos continuar citando, só na Europa, a Áustria, a Hungria, a Polónia, países de onde sopram ventos e reminiscências de tempos que julgávamos que não podiam voltar. Mas bastamo-nos com o Reino Unido, onde o povo, que se tem como exemplo de uma velha e sábia tradição democrática, votou no “Brexit” apenas porque não gosta dos intrusos que fazem a sua economia crescer. Em democracia, diz-se que a vontade do povo é soberana. Mas o que fazer quando não há hipótese de acertar na escolha porque nenhuma é boa, como vai acontecer em Novembro nos EUA? Ou o que dizer quando o povo escolhe o mal para si próprio e para os outros, como foi o caso do referendo no RU? Ou como agir quando o povo se deixa sistematicamente enganar por políticos sem escrúpulos, que, nuns casos se tornam os carrascos de quem os elegeu (Venezuela, Turquia…) e noutros querem o sistema democrático como está para poderem continuar a ser eleitos, como vemos em praticamente todas as democracias?

Estes casos demonstram por si só que a democracia está em crise. Por um lado, porque sendo as nossas democracias representativas verdadeiras formas de oligarquia, os que disputam o título de representantes do povo visam o poder para os seus fins, nuns casos, pessoais, noutros ideológicos de uma minoria que, em ambos os casos, escondem sob promessas de igualdade e bem-estar colectivo quando em verdadeira democracia os fins só podem ser os essenciais à vida em liberdade. Por outro lado, porque, o povo soberano é incapaz de definir quais os fins comuns da sociedade em que vive e cede àquele que mais lhe prometer no momento do voto. Demonstram também os casos isolados da democracia directa que nem aqueles dos quais mais se esperaria, como é o caso dos britânicos, decidem racionalmente.

Responder à pergunta de onde vem essa incapacidade de agir racionalmente não está nas nossas mãos. Mas uma coisa temos por certa: para eleger e governar, a vontade não é suficiente; para que o mundo funcione, não basta querer. O querer dos políticos não é suficiente para que a sociedade progrida indefinidamente como pretendem (nem tal progresso é condição de civilização, diríamos nós). Há limites a esse querer: é a natureza que no-los impõe e não está nas nossas mãos ultrapassá-los. É fácil compreender isto se, em vez da palavra “natureza”, usarmos a palavras “ambiente”. Todos reconhecemos que os grandes planos económicos centralizados falharam quando teimaram em explorar o ambiente para além do possível, ou quando à economia de mercado foi deixado caminho livre para poluir e explorar recursos indiscriminadamente. Já é mais difícil a compreensão, se a palavra usada for “economia”, porque a ela não associamos leis naturais, como devíamos, mas antes a vemos como um instrumento da vontade de quem governa. E, por isso, temos governantes que, consciente ou inconscientemente (não sei qual o pior), prometem o impossível: gastar o que não temos ou não pagar aos credores e ao mesmo tempo pedir-lhes mais dinheiro. Mais difíceis ainda são os limites à suficiência da vontade que resultam da própria natureza humana, cuja compreensão, certamente, nos tornaria a todos suficientemente sábios para fazer as nossas escolhas racionalmente e poder viver livres e em democracia.

O que temos por certo permite, isso sim, mais uma última reflexão: a democracia, para poder dar-nos a liberdade, precisa de escolhas racionais. Se insistirmos em propor aos eleitores escolhas irracionais e o povo insistir em escolhas sentimentais, a democracia acabará por falhar e cederá o lugar a outras formas de governo em que a liberdade cederá, por sua vez, a outros fins com ela incompatíveis, sejam eles o bem-estar social ou a igualdade, sejam eles os fins individuais de um qualquer ditador.

Advogado, Macedo Vitorino & Associados

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