A cultura política da Venezuela e o risco da guerra civil

Como se chegou a esta situação "exótica", onde os responsáveis políticos e judiciais pelo cumprimento da Constituição são acusados de a violar ostensivamente? Estará a Venezuela à beira de uma guerra civil?

1. A 27 de Junho de 2017 ocorreu mais um episódio na turbulenta situação política da Venezuela. Na capital, um helicóptero atacou a sede Supremo Tribunal e outros edifícios governamentais. O Presidente Nicolás Maduro denunciou rapidamente o acto como um ataque “terrorista” contra as instituições do país. Todavia, mais do que de uma acção de rebelião armada, pareceu tratar-se de um espectacular acto de protesto e de apelo à mobilização da oposição, numa situação social e política desesperada. Óscar Pérez, o oficial da polícia que terá sido o seu autor, exibia um cartaz onde estava escrito "Liberdade" e artigo 350.º (da Constituição). Esse artigo dá à população um direito de desobediência face aos governantes, em circunstâncias excepcionais: "O povo da Venezuela, fiel à sua tradição republicana, à sua luta pela independência, à paz e à liberdade, desconhecerá qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas ou usurpe os direitos humanos." Essa foi também a mensagem difundida num vídeo através nas redes sociais, onde o mesmo oficial apelava à desobediência civil da população contra o governo de Nicolás Maduro. Como se chegou a esta situação "exótica", onde os responsáveis políticos e judiciais pelo cumprimento da Constituição são acusados de a violar ostensivamente? Estará a Venezuela à beira de uma guerra civil?

2. No passado, a Venezuela espicaçou muitas vezes o imaginário europeu sobre o Novo Mundo, gerando grande curiosidade a atracção pelas suas riquezas. Isso ocorreu desde os primeiros contactos com as Américas, em finais do século XV. Américo Vespúcio (Amerigo Vespucci), o comerciante, navegador e geógrafo florentino ao serviço do Reino de Espanha terá visto aí — ao chegar ao lago de Maracaibo —, semelhanças com Veneza: daí o nome Venezuela, ou pequena Veneza. (Outra explicação sugere a origem do nome na linguagem indígena.) A fama que Américo Vespúcio adquiriu em inícios do século XVI, sobretudo pelos seus relatos coloridos de viagem, levou a que seu nome fosse usado para identificar todo um continente. (A designação surgiu no mapa Universalis Cosmographia de Martin Waldseemüller, de inícios do século XVI, a quem se deve o termo América.) Mais tarde, já em finais do século XIX, o escritor de livros de aventuras e ficção científica Júlio Verne (Jules Verne), publicou também o "Soberbo Orenoco". O livro capta a grandiosidade da natureza na Venezuela e foi inspirado nas viagens do explorador francês, Jean Chaffanjon, à bacia do Oreno (ou Orinoco). Para além da curiosidade e do espírito de aventura, a perspectiva de encontrar riqueza e bem-estar levou muita população europeia, sobretudo espanhola nas também portuguesa, a afluir à Venezuela até um passado não muito distante. Essa atracção era bem visível ainda nos anos 1970 e 1980.

3. Hoje a Venezuela (oficialmente República Bolivariana da Venezuela) não gera atracção, nem fica na mente pela exuberância das suas paisagens e imensas riquezas naturais. Fica antes gravada na memória por acontecimentos de natureza social e política perturbadores, frequentemente violentos. Imagens de manifestações nas ruas com confrontos entre a população e a polícia, ou imagens de gente desesperada, em filas intermináveis, para comprar alimentos e outros bens básicos, são comuns. O contraste é flagrante com os seus imensos recursos petrolíferos e a riqueza e bem-estar que estes poderiam gerar. Naturalmente que há causas directas desta situação no passado político mais recente. Não vou discuti-las aqui. Proponho antes um olhar sobre o passado mais distante, em particular do século XIX, que pode ajudar a compreender alguns dos problemas estruturais que persistem hoje. As sequelas da colonização — nomeadamente na estratificação social e na propriedade agrária —, e as da luta pela independência dos inícios do século XIX, não desapareceram da vida social e política. Nem desapareceram, também, as sequelas das lutas fratricidas das primeiros tempos pós-independência. Tal como aconteceu noutras partes das Américas, o período pós-colonial oscilou entre os impulsos federadores e a fragmentação política violenta. Ao mesmo tempo, foi marcado por tensões internas entre as elites políticas e económicas, fundamentalmente descendentes dos antigos colonizadores espanhóis, e as populações indígenas ou miscigenadas mais pobres.

4. As tensões pós-independência manifestaram-se, desde logo, em lutas territoriais. Nos seus primórdios, a Venezuela fez parte da Grande Colômbia durante os anos 1820. Mas esse Estado foi uma criação política efémera: fragmentou-se, desaparecendo em inícios da década de 1830. As rivalidades políticas dividiram rapidamente aqueles que conquistaram a independência face ao Reino de Espanha. Na época, os movimentos de “libertação nacional” estavam fortemente imbuídos das ideias espalhadas pela Revolução Francesa e revoluções liberais europeias. Na Europa — provavelmente com excepção da Grécia e dos Estados Balcânicos —, esse é um passado muito distante. Houve toda uma evolução política posterior que o torno pouco lembrado no presente. Não é assim na América Latina. A ligação com o período liberal da primeira metade do século XIX, com as suas figuras, posteriormente mitificadas, e as suas ideias políticas — especialmente a nação e soberania —, é um elemento central da identidade política. Na Venezuela, Simón Bolívar em particular, mas, também, Ezequiel Zamora, são exemplos disso. Este último — pouco conhecido no exterior—, foi um militar que marcou a Venezuela em meados do século XIX. Ficou conhecido pela sua defesa da reforma da propriedade agrária e de uma economia de tipo cooperativo. Ambos são hoje ícones do regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

5. Por razões históricas e sociológicas, na América Latina enraizou-se uma cultura política peculiar. Isto não significa, naturalmente, que cada Estado não tenha os seus próprios contornos sociais políticos. Obviamente que isso acontece num continente geograficamente muito extenso e diverso nos seus povos. Generalizar demasiado é sempre problemático e tende a ser pouco clarificador. Todavia, mesmo sem esquecer as especificidades relevantes, há características que, alguma forma, acabam por ser também transversais a essas sociedades. Vou apontá-las tendo sobretudo em vista a maneira como estas se evidenciam no caso da Venezuela. A primeira é a ideia de nação e de nacionalismo. Na cultura política venezuelana, tal como da América latina em geral, a conotação destes termos é largamente positiva. Embora com diferentes tonalidades e usos, incorporam a linguagem de todo o espectro político, da direita à esquerda. Na Europa — em especial na esquerda intelectual e política —, estes são vistos hoje como uma espécie de anátema. Pelo contrário, na Venezuela, são parte integrante da linguagem política de esquerda: basta ouvir, ou ler, os discursos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Não é surpreendente. Se voltarmos ao início do século XIX e à altura da independência, as ideias de nação e de nacionalismo foram progressistas e libertadoras, ou seja, genericamente de esquerda. Na América Latina mantêm-se próximas deste significado e conotação original. Na Europa perderam-no devido às tragédias das duas guerras mundiais.

6. A segunda especificidade é proximidade da linguagem política com a linguagem religiosa do Cristianismo, sobretudo católico. Na actual Europa secular, as referências religiosas (cristãs) em discursos políticos foram praticamente banidas da linguagem política. Quanto à Igreja Católica foi afastada da vida política e está, de forma correcta ou incorrecta, fundamentalmente conotada com o conservadorismo. Na Venezuela e América Latina não é exactamente assim. Na linguagem da esquerda social e política são feitas, frequentemente, referências ao Cristianismo e à sua simbologia. Há uma tradição de contestação social, de defesa dos mais pobres e desprotegidos — e até revolucionária nas suas versões mais radicais —, ligada também a certos sectores da Igreja. Tem sobretudo expressão na teologia da libertação, que se aproxima, em certas correntes, de uma fusão entre o Cristianismo e marxismo. Em qualquer caso, o Cristianismo é importante para a identidade social e política dessas populações. É aqui de notar que Hugo Chávez, para além de se procurar apresentar herdeiro político e continuador de Simón Bolívar, usou, frequentemente, referências ao Cristianismo católico. Após a sua morte, em murais de rua, é possível observá-lo como estando em ascensão ao céu, ao lado de Jesus Cristo (e, claro, de Simón Bolívar). Entre outros ataques mais seculares (e violentos), feitos aos seus críticos e opositores, estes foram também estigmatizados numa linguagem religiosa: são como os discípulos descrentes, que negaram a ressurreição de Cristo.

7. A terceira e mais problemática de todas as características é uma cultura de líderes fortes, especialmente com os traços daquilo que se costuma designar como caudilhos (caudillos). O termo designa uma forma de exercício de poder característica do século XIX. Mas a sua lógica perdurou na vida social e política até aos dias de hoje. O culto da personalidade, bem visível no regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, é uma das suas expressões. Mesmo em democracia, os sistemas presidencialistas típicos da América Latina (uma imitação da Constituição dos EUA), parecem não escapar a essa lógica. É um obstáculo sociológico profundo a uma genuína democracia pluralista. Tais lideranças convivem mal — quando não erradicam mesmo —, com os mecanismos de democracia representativa e o pluralismo social e político. Esta cultura política pode explicar as frequentes ditaduras (sobretudo de direita e/ou de perfil militarista), mas também lideranças populistas e autoritárias, próximas da esquerda social e política, que formalmente mantêm uma “normalidade” democrática. A profunda desigualdade social, a falta de mecanismos e organizações da sociedade civil, a quase ausência de uma classe média e a tendência para um Estado clientelar (e a corrupção), que favorece os que o controlam, em detrimento do bem comum, tornam uma governação democrática, imbuída por preocupações de justiça social, mas que também respeite as minorias e oposição e os direitos e liberdade fundamentais, particularmente difícil. Esta é a tragédia da Venezuela (e da América Latina). No pior cenário, torna a contestação ao poder, seja ele qual for, numa luta violenta de facções que contém a engrenagem de uma guerra civil. Esperemos que não seja esse o futuro da Venezuela.

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