Macron e o fim do mundo anglo-saxónico

O Presidente francês, que foi eleito fazendo da Europa a sua principal bandeira, alterou as regras do jogo.

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1. A história pode contar-se em poucas palavras. No último ano, a crise europeia fazia antever o cenário impensável da desintegração. O “Brexit” e a eleição de Trump foram dois tremendos electrochoques, que se somaram às profundas divisões norte-sul, provocadas pela crise do euro, e à vertiginosa ascensão do populismo e do nacionalismo. A França transformou-se no centro desta crise fatal, quando Marine Le Pen parecia (quase) imbatível. De repente, a entrada vertiginosa de Emmanuel Macron em cena, a sua espantosa vitória presidencial, confirmada largamente pelas legislativas, provocou um electrochoque de sinal contrário. Em dois meses, o Presidente francês, que foi eleito fazendo da Europa a sua principal bandeira, alterou as regras do jogo.

Há muitos problemas que subsistem. Trump, apesar de Paris (e da genial diplomacia do Presidente francês), continua a ser um enorme problema. O “Brexit” entrou numa fase de tamanha desorientação que já ninguém sabe onde vai acabar. É penoso ver um país que foi um baluarte da liberdade e da abertura ao mundo mergulhado numa crise identitária que o remete para o isolamento e para a perda de influência, retirando à União Europeia um dos seus mais fortes pilares.

A novidade é que a França volta a ter um presidente que acredita na Europa, ainda mais necessária ao mundo pela entrada em cena de Trump, que não teme falar claro sobre os problemas mais difíceis que a afectam, que quer reconstruir o velho mas indispensável eixo franco-alemão, não numa base de dependência ou imobilismo, mas de equilíbrio em torno de ideias claras e de propostas ambiciosas, mesmo que arriscadas. E que tem do outro lado do Reno uma chanceler que é europeísta, que acredita nas imensas virtualidades da Europa e do euro para o seu país, que percebe a necessidade de um entendimento estratégico com a França, mas que ainda não se atreve a dizer aos alemães o que pensa. Porque tem eleições, evidentemente, mas também porque os induziu em erro durante a primeira fase da crise da dívida e, agora, precisa de uma enorme coragem para ajustar o caminho.

2. Enquanto o Presidente americano se deslumbrava com Paris e com o seu novo parceiro, ocorria uma outra reunião, que faz parte do calendário franco-alemão desde o Tratado do Eliseu de 1963, mas à qual já ninguém ligava muito: o Conselho de Ministros bianual dos governos de Paris e de Berlim para acertar agendas internas e europeias.

Subitamente, regressou à vida activa. Tomou algumas decisões importantes para confirmar que, desta vez, o velho motor está preparado para funcionar. A defesa foi um domínio privilegiado — o que demonstra que a chanceler percebeu finalmente que a Europa não é apenas economia, mas é também política e estratégia. Como ela própria disse recentemente, os europeus deixaram de poder depender “completamente” dos EUA para a sua segurança, pelo que têm de passar a fazer mais por si próprios.

A indústria de armamento foi um dos sectores privilegiados. Os dois países querem construir em conjunto uma nova geração de aviões de combate para substituir os Rafale franceses e os Eurofighters (construídos por vários países europeus, incluindo a Alemanha e a Grã-Bretanha) e poder rivalizar com os aviões de combate suecos ou americanos. É um sinal positivo, que beneficia sobretudo os alemães, ainda bastante atrasados em matéria de indústria de armamento, face aos gigantes franceses e britânicos da Airbus e da BAE Systems, para já não falar dos EUA. Outras áreas de cooperação incluem um eurodrone militar e o reforço da cooperação em matéria de ciberguerra. O destino é claro: acelerar a construção dos alicerces de uma política de segurança e defesa comum.

3. No outro grande estaleiro da reconstrução da Europa, a reforma do euro, houve mais palavras do que decisões e será assim até 24 de Setembro, quando se realizarem as eleições alemãs. Merkel deu alguns sinais de abertura. Disse que deixar tudo como está pode levar ao retrocesso. Macron tem a enorme virtude de chamar os bois pelos nomes, para que toda a gente compreenda. Basta citar esta frase, publicada na imprensa francesa na véspera da cimeira com Merkel: “Nunca critiquei o facto de a Alemanha ser competitiva. Mas parte dessa competitividade é devida às disfunções da zona euro e à fraqueza das outras economias.” Outros temas, como a harmonização fiscal das empresas, foram debatidos, mas ainda sem resultados à vista. Os termos para um acordo sobre o futuro estão lançados. Falta provar que Berlim está à altura da parada e que Macron leva a cabo a “revolução” francesa que prometeu à chanceler. 

4. Dito isto, o caminho é longo e pejado de dificuldades e a segurança europeia vai continuar ainda por bom tempo a depender da NATO. E que o futuro da Europa não se restringe apenas ao euro e à defesa. Hoje, são os valores políticos fundamentais em que assenta a integração europeia que estão a ser postos em causa. Na Polónia e na Hungria, o descalabro começa a ser inquietante. Mas não é só isso. Quando a Áustria ameaça colocar tropas na fronteira com a Itália, apenas porque o Governo italiano pede ajuda para deixar de enfrentar sozinho a vaga de refugiados que continua a chegar às suas costas, muita coisa ainda está muito mal na Europa. Os refugiados são um desafio que veio para ficar por muitos e bons anos. Serão o último teste aos valores europeus.

E há, como quase sempre acontece em momentos de grande mudança, um lado preocupante nesta vaga de optimismo europeu. Com Trump e com o “Brexit”, podemos estar a assistir ao fim do mundo anglo-saxónico que liderou o sistema internacional desde a II Guerra. E a história ensina-nos que, numa Europa continental, os riscos da tentação hegemónica são sempre maiores.

5. Não posso deixar de referir mais um tema, desta vez bastante triste. Quando Lula foi eleito Presidente, o mundo democrático saudou-o como um sinal de esperança para toda a América Latina. Era do Partido dos Trabalhadores, mas pertencia à sua face mais moderada e aberta. Não era contra a globalização nem antiamericano, mesmo que quisesse, com justiça, um maior equilíbrio de poder entre o Norte e o Sul. Percebia a necessidade de manter as contas públicas em ordem, para manter a inflação controlada. Deu um extraordinário contributo para diminuir a terrível desigualdade que persiste no seu país. Em 2009, Obama saudou-o: “This is my man.” O mundo rendeu-se-lhe.

Quando rebentou o “mensalão”, atingindo os seus braços direitos, como José Dirceu e António Pallocci, Fernando Henrique Cardoso disse-me, numa entrevista, que era preciso evitar que o Presidente matasse o ícone. Já nessa altura era difícil de acreditar que Lula não soubesse de nada. Mas havia ainda uma enorme tolerância. A economia crescia, o protagonismo do Brasil no mundo também. Lula acaba de ser acusado, juntando-se a uma classe política minada pela corrupção, que é a verdadeira ameaça à democracia brasileira. É uma cabala dos poderosos contra o povo? Dificilmente. A esquerda brasileira teima em comungar da ideia de que defender os pobres contra os ricos lhe dá uma legitimidade que as outras forças políticas não têm. É esta visão muito parcial da democracia, que o PT parecia ter inicialmente abandonado, que regressa em força. Lula defende o povo, qualquer abuso lhe deve ser desculpado. Não é assim. Lula matou o ícone, para mal do Brasil e do mundo. Faz pena olhar hoje para um país que chegou a conseguir transformar o futuro em presente, mas que corre o risco de voltar à casa de partida.

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