Lebanon: o Leão de Ouro dormiu esta noite num tanque israelita

Prémio principal para Lebanon, de Samuel Maoz, experiência catártica da guerra.
No palmarés também a interpretação de Colin Firth e o filme da iraniana Shirin Neshat

a Dedicou o Leão de Ouro aos milhares que em todo o mundo voltam da guerra, sãos e salvos, mas que deixaram "a alma" na batalha; espera - "e pode ser ingenuidade minha" - que o seu filme, Lebanon, "abra a mente das pessoas", "que as leve a perguntar: 'Quem pensamos que somos? Em quem é que nos tornámos? Quem podemos voltar a ser se pararmos com as guerras?'" Era Samuel Maoz, que foi soldado israelita na primeira guerra do Líbano, nos anos 1980, ao receber sábado à noite o prémio principal do palmarés da 66.ª edição do Festival de Veneza. Tinha confessado já no festival que só começou a voltar da guerra e que só começou a perdoar-se, ao fim destes anos, quando realizou Lebanon. Tinha já dito que, por muito que se explique e se compreenda, só quem esteve lá, na guerra, é que sente o que é.
O Leão de Ouro dormiu esta noite num tanque israelita, o único cenário durante hora e meia desta dolorosa catarse da memória de um ex-soldado que se tornou cineasta e experiência de intensa claustrofobia para o espectador, que sente e vê apenas o que os quatro soldados no interior do tanque sentem e vêem - filme de guerra e experiência autobiográfica juntos, formalmente um "tour de force".
Fez-se silêncio, também, para o discurso, que subiu a fasquia da explicitação política, da iraniana Shirin Neshat, fotógrafa e videoasta que recebeu o prémio de melhor realização - Women without Men é mais conceito de "visual artist" do que de cineasta, na verdade. Shirin dedicou-o ao povo do Irão que luta pela democracia, apelou ao Governo iraniano a "que dê ao povo aquilo que ele merece".
Entende-se, da parte do júri presidido por Ang Lee, este prémio a um filme que, seguindo o destino de quatro mulheres, reconstitui em Marrocos (o filme não pôde ser rodado no Irão) a Teerão do último período democrático do país, o do Governo de Mohammad Mossadegh, derrubado em 1953 por um golpe de Estado para o qual juntaram esforços o Xá e a CIA.
Colocar o filme no palmarés era uma decisão a que o júri talvez não pudesse escapar, já que a oposição ao regime de Ahmadinejad foi um dos tópicos deste festival. Esteve presente em filmes fora do concurso, e um deles, Green Days, de Hana Makhmalbaf, é mesmo um eloquente e emocionante retrato de um presente: filmado nas ruas de Teerão, quando a cor verde pintava todas as esperanças na candidatura presidencial de Mir-Hossein Mousavi, revela ao Ocidente uma juventude em desespero emocional pelo resultado eleitoral. Quanto à esfíngica Shirin, toda de negro, tinha enrolada nos braços também uma faixa de vibrante verde.
Perante isto, a agitação do alemão Fatih Akin e da sua equipa - cá fora, na passerelle, clamando que Soul Kitchen era uma "anarchic comedy"; lá dentro agradecendo ao produtor que "teve tomates" para este filme - tinha mais fumo do que fogo. Mas esse é o problema de Soul Kitchen, comédia sobre um grupo de personagens ligadas a um restaurante: é mais bem comportado do que quer parecer e um prémio do júri costuma ser entregue a obras mais arriscadas.
Esperado foi o prémio de interpretação a Colin Firth, que encarna um professor em luto pela morte do companheiro de 15 anos - A Single Man.
É uma personagem que reforça o perfil romântico do Mr. Darcy de Orgulho e Preconceito, e isso fez algo para que a estreia na realização de Tom Ford fosse recebida da forma como foi. E foi responsável pela maior ovação da noite na cerimónia, dedicada a Firth, que, dominando o italiano, agradeceu a Itália "todas as dádivas" que lhe deu, a cultura, a comida e os vinhos, para além da esposa... e então chorou.

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