Fizemos política entre os políticos e deixámos os eleitores fora deste círculo

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Reding com o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Viviane Reding considera essencial que a Europa volte a falar com os seus cidadãos e por isso propõe uma grande consulta pública europeia. Sobre Portugal, diz que proclamou a sua independência face aos mercados ao ratificar o novo tratado. Por Teresa de Sousa

Luxemburguesa, veterana de Bruxelas, vice-presidente da Comissão Europeia e a comissária responsável pela Justiça, Direitos Fundamentais e Cidadania. Esteve em Portugal no dia 4 de Maio para apoiar os esforços que o país está a fazer para cumprir os seus compromissos com a troika. Defende o que está a ser feito para combater a crise, mas considera também que não se constrói a Europa ignorando os seus cidadãos.

Hoje, a Europa tem pela frente problemas enormes...

Para todos nós e não apenas para vocês. Deixe-me apenas acrescentar que os momentos em que há problemas são sempre os momentos mais propícios para fazer reformas. Quanto tudo corre bem, ficamos todos sentados. O Luxemburgo, que é um país onde tudo corre bem, acaba de apresentar as suas primeiras medidas de austeridade.

Podemos então começar por aí. Essa palavra "austeridade" tem sido a palavra-chave do debate europeu. Não corremos um risco de má interpretação dessa palavra, que leve as pessoas a rejeitá-la e, com ela, a própria ideia de Europa?

Tem razão. O nosso problema de endividamento é menos grave do que, por exemplo, nos Estados Unidos. O nosso problema de défice é menos grave. Já ouviu os americanos queixarem-se? O euro é mais forte que o dólar e nós agimos como se houvesse um problema do euro, quando não há. O euro é uma moeda forte, a segunda moeda de reserva no mundo e é, sobretudo, a solução dos problemas, não é a sua causa. O problema é que nós todos, embora em graus diferentes, acumulámos demasiada dívida, o que pesa nos nossos orçamentos nacionais e que pesará nas gerações futuras que deverão pagá-la. Portanto, temos de fazer qualquer coisa agora. Como tudo parecia correr bem, esquecemo-nos de fazer as reformas estruturais que seriam necessárias...

Porque o mundo mudou e a Europa deixou-se ficar para trás?

Absolutamente. Devemos fazê-las agora para que este continente, que é a nossa verdadeira riqueza, se mantenha uma economia dominante no mundo. E também precisamos de conseguir que fale a uma só voz.

É a comissária da Justiça, da Cidadania e dos Direitos Fundamentais num momento em que falamos apenas de dívida, de défices, de austeridade, de soluções financeiras. Imagino que deva estar muito preocupada com aquilo que se passa hoje na Europa, com a emergência do populismo, da xenofobia, do nacionalismo. Há muita gente que hoje vê a Europa como responsável pelo seu sofrimento e isso é perigoso, incluindo para a sua legitimidade.

Tocou em muitas questões. A questão de fundo é a dos valores europeus e estes são a longo prazo, não a curto prazo. A crise é de curto prazo, é um problema que temos de resolver agora. Temos de encontrar agora os meios para reduzir os custos para as gerações futuras e fazer com que haja de novo empresas competitivas que façam a economia crescer. Há respostas técnicas a dar. Podemos, com meios legislativos, abrir o mercado interno, onde ainda há muitos entraves que impedem as PME de fazer os seus negócios transfronteiriços, aumentar os seus mercados, poder empregar mais gente. Não podemos pensar em abrir os mercados, se os fechamos à livre circulação das pessoas. É um disparate completo.

Mas foi o que vimos defender nas eleições francesas: a reposição das fronteiras.

É um completo disparate. Não podemos desenvolver o mercado interno se fechamos as fronteiras aos seres humanos, o que contradiz completamente toda a legislação, todos os nossos tratados, todos os nossos valores. Os desvios a que assistimos hoje são desvios que resultam do medo e de um pensamento eleitoralista a muito curto prazo. Recuso-me a entrar neste pequeno jogo porque é um jogo destrutivo. O que temos de fazer é tomar medidas para recolocar a economia a funcionar, não para os bancos, mas para os cidadãos. Por que razão o presidente Barroso tomou a decisão de juntar o dinheiro dos fundos estruturais e do fundo social para ajudar o emprego dos jovens? Porque é preciso encontrar uma resposta para as pessoas. Não é uma resposta ideológica nem eleitoralista, é uma resposta para criar a sociedade futura que nós desejamos. E aí há um problema de fundo. Durante anos, conseguimos fazer avançar a integração europeia, mas negligenciámos um pouco a tarefa de explicar todas as medidas que fomos tomando aos cidadãos, de as discutir com eles e de lhes perguntar o que pensavam.

Há este défice. Fizemos a política entre os políticos e deixámos os eleitores um pouco fora deste círculo...

Por isso lhe coloquei a questão da legitimidade da Europa.

Por isso, lançámos a 9 de Maio - o Dia da Europa - uma consulta inédita aos cidadãos que pretende ser muito ampla. Que vai perguntar ao homem da rua: quais são os seus problemas face à Europa? Quais são os seus sonhos? O que é mais frustrante na maneira como se está a construir a Europa? O que gostaria que fizéssemos? Será uma consulta que se prolonga até Setembro, que envolve associações nacionais e cujos resultados vão ser analisados para lançar um grande debate público ao longo de 2013, que é o Ano Europeu do Cidadão. Vamos para o terreno. Não queremos fazer a política europeia a partir de Bruxelas, mas em Coimbra, no Porto...

Mas acredita que as conclusões dessa consulta vão ter alguma influência nas decisões dos governos?

Deixe-me continuar. Teremos uma consulta pública para nos ajudar a preparar esse Ano Europeu do Cidadão. Acabei de discutir isso com os parlamentares portugueses e com membros do Governo. Toda a gente deve participar nesta iniciativa, ir ao terreno, discutir com as pessoas. Saberemos, no fim desta consulta, quais são os problemas que as pessoas querem ver discutidos. Esta consulta vai conduzir-nos a um grande relatório para ser apresentado no dia 9 de Maio do próximo ano sobre a cidadania europeia. Para mostrar que a Europa não se pode construir sem os europeus.

Mas, entretanto os cidadãos europeus votam e, graças a isso, também sabemos o que pensam. Há um problema político de rejeição da ideia europeia...

Está a misturar coisas diferentes... Já disse que há questões a curto prazo e que têm a ver com a forma de sair da crise. E estamos a tratar delas.

A sua proposta é no mais longo prazo? Escreveu um artigo a defender cinco etapas para chegar a uma união política.

Justamente, mas precisamos de preparar isso. E o que queremos para este Ano Europeu do Cidadão é que todos os políticos, nacionais, regionais, locais, estejam de novo a escutar as pessoas. É o princípio de uma nova forma de fazer as coisas. Há o curto prazo e há o longo prazo. Em 2014, haverá eleições para o Parlamento Europeu. É preciso que os cidadãos, com conhecimento de causa, saibam que exigências podem fazer aos partidos políticos. O ano de 2014 deve ser o ano dos partidos políticos europeus que devem, nessa altura, apresentar os seus planos perante os cidadãos...

O clima na opinião pública não parece disponível para um salto dessa natureza.

O que vemos no Eurobarómetro é que a confiança dos cidadãos nos dirigentes políticos está a descer. É ainda um pouco mais alta nas instituições europeias do que nas nacionais, mas as duas linhas descem em paralelo. É um enorme perigo. Porque, se não há a confiança dos povos nos seus dirigentes nacionais e europeus, a democracia não pode funcionar. A resposta que dou é essa: voltemos a falar com os cidadãos. Porque não o fazemos há anos, essa é que é a verdade. Devemos também explicar que o euro, por exemplo, é uma solução para os problemas, não é o problema. A solidariedade que a Europa pode dar aos estados é a resposta aos problemas, não é o problema.

Portugal está a fazer uma coisa historicamente incrível. Num período de crise nacional encontra a força para o consenso político...

Encontra?

Sim. Se comparar Portugal com outros países. É admirável e é um exemplo. E estou aqui para dizer: nós estamos a ver o que vocês estão a fazer, têm o nosso apoio, não estão sozinhos

Disse que as reformas precisam de tempo para dar frutos. É justamente esse o problema: como conciliar o médio prazo com o curto prazo imposto pelo programa de ajustamento da troika. A Europa ainda não tem uma resposta.

Que resposta poderia ter?

Há o tratado orçamental, mas podia haver outras coisas. A Comissão já falou delas: eurobonds, maior intervenção do BCE...

O que é que a Europa pode fazer se o que faz é ignorado pelos media? Os media falam todos do tratado orçamental... E, já agora, parabéns a Portugal por ter sido o primeiro a ratificá-lo. Foi uma declaração de independência face aos mercados. Mas todas as medidas para que haja uma evolução dos mercados, dos investimentos para a criação de emprego, são medidas que a Comissão já pôs em cima da mesa desde o ano passado...

Mas continuam em cima da mesa...

Não. Estão em vias de aplicação. Já lhe dei o exemplo dos fundos estruturais. Estamos em vias de reforçar o Banco Europeu de Investimento (BEI), porque o grande problema é a falta de financiamento às empresas por causa da fraqueza da banca. São instrumentos importantes que estão a ser disponibilizados. E a Comissão já apresentou a proposta dos project bonds para poder financiar as grandes infra-estruturas. E garanto-lhe que teremos os project bonds. Porque, se queremos fazer as reformas e os investimentos estruturais, é necessário dinheiro a médio e longo prazo. E o último Conselho Europeu tinha o quê como tema?

O crescimento. Mas o resultado, por enquanto, é o agravamento da recessão na Europa.

É preciso tempo para ver os resultados. Mas estou de acordo com a maneira como colocou a questão: temos esta dificuldade de articular o curto com o médio prazo. Temos problemas de curtíssimo prazo: os salários são reduzidos agora, os postos de trabalho são perdidos agora. As políticas que pusemos em marcha para responder a isso terão resultados mais tarde. Há este tempo em que se torna difícil de compreender o que estamos a fazer.

Isso tem um preço social muito alto. Qual é o limite? É esse o problema político.

É um problema político para toda a Europa. Começámos tarde a fazer as reformas que, com ou sem crise, seriam necessárias. E fazemo-las todos ao mesmo tempo e em pânico. Mas devemos saber que as fazemos em conjunto e que, se conseguirmos vencer esta crise, será em conjunto. A única coisa que temos, do ponto de vista económico, é o Mercado Interno. É aí que estão as oportunidades para as nossas empresas...

Agora, também temos de construir até 2020 essa nova Europa política, que tem de ser muito mais capaz do que no passado de tomar decisões comuns e de não discutir com trinta vozes dissonantes, mas de avançar em conjunto.

E isso será possível?

Vinte anos depois do Tratado de Maastricht, tínhamo-nos esquecido de acrescentar à união monetária a união económica. É o que fazemos agora. A crise também nos está a demonstrar que, se não acrescentarmos no médio prazo a união política, isto não avançará. Comecemos agora a prepará-la porque ela não nos vai cair do céu. A crise, pelo menos, mostrou-nos o caminho.

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