"Fazemos o trabalho dos jornalistas — a diferença é que temos de fazer rir"

Tem lugar cativo como cartoonista desde o início da década de 60 e continua no activo, depois de ter percorrido boa parte da imprensa francesa. Tempo e distância suficientes para avaliar o que mudou no desenho de imprensa ao longo dos últimos 45 anos — e para ser condecorado com a Legião de Honra.

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Presença habitual no PortoCartoon, Georges Wolinski esteve uma vez mais no Porto, desta vez para presidir ao júri do festival. Cartoonista, ilustrador, autor de BD e um bocadinho militante (menos do que nos anos 60, mas ainda assim militante), Wolinski explicou em entrevista ao PÚBLICO porque é que os jornais não vivem sem os cartoons e o que mudou desde que começou a trabalhar na imprensa, em 1960.

É fácil distinguir um bom cartoon?
Para mim é, tenho 45 anos disto. Mais, até, porque adoro banda desenhada desde miúdo. Na 2.ª Guerra Mundial, quando os americanos chegaram a Tunes, traziam comics. Os outros miúdos da minha idade pediam-lhes chocolate, chewing-gum; eu dizia-lhes "I want comics". Foi assim que conheci o Super-Homem e o Terry e os Piratas, do Milton Caniff. Depois tornei-me desenhador e vim a ser, durante dez anos, chefe de redacção do Charlie Mensuel, através do qual tive a pretensão de mostrar aos franceses o que era a banda desenhada mundial. Com isso, adquiri uma certa experiência. Acho que todos os desenhadores profissionais vêem imediatamente se um cartoon é bom ou mau. Às vezes, é quase bom: e aí é preciso esperar. Disse-o muitas vezes a desenhadores que me vinham mostrar os seus trabalhos: são precisos dez anos. Às vezes, quando os encontrava, dois ou três anos depois, eles vinham ter comigo e diziam: "Hei, Wolinski!, já só faltam mais sete!".

O que é que um bom cartoon tem de ter?
Um bom desenho tem de fazer rir, mas também tem que obrigar os leitores a pensarem, depois de se rirem, "ele tem razão". O nosso talento é mostrar bem as diferenças entre o que os políticos dizem e o que eles fazem, entre o que parecem e o que são. Também é esse o trabalho dos jornalistas - a diferença é que nós temos a obrigação de fazer rir e os jornalistas não. Vocês têm bons humoristas: o António, o Cid.

Porque é que os jornais conservam a tradição do cartoon há tanto tempo?
Porque é a primeira coisa que as pessoas vêem no jornal. O cartoon é de leitura simples: basta uma olhadela para se compreender. É um pouco a imagem do jornal.

O desenho de imprensa evoluiu muito nestes últimos 45 anos?
Não se desenha como se desenhava em 1900. Há uma enorme diferença entre um desenhador como o Daumier ou o que se fazia num jornal lendário em França entre 1901 e 1912, L’Assiette au Beurre, e os jornais actuais. Dantes o desenho era mais académico, agora é mais esquemático. Os meus desenhos seriam incompreensíveis nos anos 20, porque houve uma evolução e hoje há referências que dantes não havia: o desenho animado e a banda-desenhada americana com todos os seus mecanismos de simplificação, como os balões de texto. E o humor também é melhor, agora. Dantes era muito aquele tipo de humor sobre a sogra. Isso acabou — o desenho humorístico sem conteúdo político deixou de ter lugar na imprensa.

Trabalhou para jornais satíricos como Hara-Kiri, para jornais de combate como L’Enragé, para jornais comunistas como L’Humanité e para jornais generalistas como o Libération. O seu estilo muda muito consoante a publicação?
Não se pode mudar, é essa a condição para sermos respeitados. Mas sejamos honestos: é óbvio que há pequenas diferenças. No Charlie Hebdo, se eu quiser, posso desenhar alguém a sodomizar o papa. No Paris-Match nem pensar — mas desenhar alguém a sodomizar o papa também não é assim tão importante. Quando entrei para o Paris-Match, há 15 anos, o chefe de redacção, Roger Thérond, só me impôs uma restrição: "Evita as pilas" [évite les bites]. Mas há coisas típicas do meu estilo: sou o único desenhador político que, quando desenha uma mulher (uma secretária no gabinete do primeiro-ministro, por exemplo), faz questão que ela seja sexy. Noutro dia meti a Monica Bellucci entre o Sarkozy e o Villepin num cartoon para o Paris-Match. Escrevi por baixo: eu sei, ela não está aqui a fazer nada, mas gosto muito de a desenhar.

Como é que estes seus temas fétiche — as mulheres e o sexo — se encaixam nos jornais "sérios" com que colabora?
Os jornais sérios são cada vez menos sérios. Actualmente posso permitir-me coisas que há dez anos nunca seriam publicadas. Mas também há temas com os quais dantes brincávamos muito e agora já não podemos. As crianças, por exemplo — é preciso ter cuidado. Lembro-me de um desenho meu em que uma miúda dizia a um polícia que o pai a tinha violado e o pai respondia "ah sim, mas ela consentiu". Já não posso fazer um desenho destes — com todos os processos de pedofilia que tem havido, seria muito chocante.

Impuseram-lhe muitos limites no L’Humanité?
Muito raramente. Até porque, embora não me autocensurasse, eu tinha muito cuidado para não escolher temas que pudessem irritá-los. Houve uma ou duas vezes em que o chefe de redacção, Roland Leroy, me disse que o meu desenho os incomodava. Mudei o desenho. Nunca me recuso a mudar um desenho. O chefe de redacção está em sua casa e tem todo o direito de me dizer que o meu desenho não tem piada, ou, como faziam os comunistas, que o meu desenho não é "oportuno". Muda-se, faz-se outra coisa. É normal.

Como conseguiu passar da contestação ao establishment?
Tornei-me um notável (risos). Não acha que é normal? Começamos marginais, revolucionários, contestatários; fui isso tudo, mas estávamos em 68 — e nós tínhamos razão em 68. Hoje vivo como um burguês. Mas não fui eu que mudei, foi a sociedade que mudou. Se nós ganhámos as grandes lutas — emancipação da mulher, abolição da pena de morte, o direito ao aborto e à contracepção —, agora vou bater-me contra quê? Para as lutas que restam, infelizmente, não chega batermo-nos. O que é que eu posso fazer contra o terrorismo ou contra o aquecimento global?

Ainda está furioso [enragé, título de uma publicação fundada por Wolinski]?
Não. Tenho menos razões para me indignar. Não só porque me sinto impotente, mas também porque envelheci e começo a marimbar-me. Tenho vontade de viver tranquilamente. Tenho mais de 70 anos, em condições normais devia estar reformado. Já não tenho idade para continuar a fazer o número do provocador. A sociedade mudou e as coisas estão objectivamente melhores. Ainda por cima, há dois anos encontrei o presidente Jacques Chirac em férias, na Reunião, simpatizámos e ele deu-me a Legião de Honra. Agora tenho uma condecoração — assim é difícil ser marginal.

Precisamente quando o condecorou, o presidente Jacques Chirac disse que tem um humor muito gaulês. O que é que isso significa?
Sinto-me muito francês, é verdade. E no entanto não tenho sequer uma gota de sangue francês: o meu pai era polaco e a minha mãe era uma judia ítalo-tunisina. Na verdade, não há nem humor francês, nem humor judeu, nem humor americano. Há só o humor, and humour is the same everywhere.

A França reconhece-se nos seus desenhos?
Acho que sim: vou recebendo queixas, o que significa que as pessoas percebem que às vezes eu lhes chamo estúpidas. Porque por vezes são estúpidos, os franceses. Quando disseram não no referendo sobre a Europa, não pude deixar de os insultar.

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